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Brooklyn, Nova Iorque. 1949
A lua cheia brilha no céu e as nuvens decoram-na que nem manchas de algodão preto. O cheiro da chuva ainda paira no ar e em Henry Highsmith, o carniceiro mais famoso deste lado de Nova Iorque. Agora e ao longo de mais de duas décadas que Henry corta as carnes mais suculentas de Brooklyn, negócio que correu diretamente das veias de sangue irlandês do seu progenitor para as suas.
Mas mais importante que isso, sobra-lhe a verdadeira herança que o pobre bêbado lhe deixara. As suas mãos. Tão grotescas e monstruosas como as do pai. Mesmo se não soubéssemos melhor, nunca diríamos que à anatomia humana tinha sido entregue aquela quantidade de calos e espessura de pele.
Poderia ter sido ganha com os anos de experiência, sim. Mas Henry Highsmith lembra-se delas desde que tinha idade suficiente para beber o seu primeiro copo de whisky. Aliás, a única coisa que os anos de experiência deram a Henry foi o sangue entranhado na sua pele. A única recordação de animal morto após animal morto.
Seguro será dizer, que nenhuma senhora que se preze rodeia Henry com a sua companhia - a não ser que precise de um cão de guarda. E por mais infeliz que seja a situação, Henry aceita. Seja a custo de um punhado de notas amarrotadas ou um quilo de carne fresca. Tudo é negócio quando o corpo é que paga.
E o corpo de Henry Highsmith já pagara o seu preço, se contássemos toda a nicotina que nele entrou. Mas por alguma razão, de alguma maneira - o relógio continua, não tivesse Henry Highsmith sangue nas suas mãos.
As gotas de água pingam pela sua gabardine - o único som que faz companhia às passas secas que Henry dá no seu cigarro enquanto espera pelo último comboio da noite.
A sua melhor esperança para companhia são os seus próprios passos que correm ao longo da plataforma enquanto tenta relembrar a quem e o que é que vendeu mais hoje. Mas pouco importa – amanhã tudo voltará ao inicio.
Não que Henry esteja muito preocupado. Agora ou em qualquer outra noite. Ele sabe o dom que tem e a última coisa na sua vida é problemas em utilizá-lo. Geralmente, a carne que corta é de animal. Mas como tudo, existem exceções.
Um passo a mais e Henry pára. Um cheiro familiar e ao mesmo tempo desconhecido. Sangue. Daquele a que não está habituado. Muito.
Com as suas fagulhas, o comboio cumprimenta a noite e pouco demora até que o verde-escuro das carruagens faça o mesmo. À distância, tão vazio como qualquer outro ponto da estação.
As portas abrem-se e Henry não está sozinho. Na plataforma, do lado esquerdo, um homem de bom porte afoga as suas mágoas numa enorme poça de sangue. No seu lado direito, uma mala com uma forma tão cheia quanto o homem.
Henry Highsmith pega na mala e espreita dentro dela. Rasga um sorriso de orelha a orelha. Entra na carruagem.
As portas fecham-se.
O comboio parte.
A chuva cai.
II
Lá fora, uma tempestade. A cair no metal barato do comboio.
Cá dentro, algo muito pior. Henry Highsmith agarrado à mala que acabara de encontrar como se não houvesse amanhã. Não que esteja acompanhado por muito mais que os jornais do dia anterior, mas Harry tem a informação necessária para não largar um dedo do cabedal preto.
A não ser que seja para fumar, claro.
Henry tira o cigarro mais rápido de sempre do bolso da sua bata. Acende-o. O fumo inunda a carruagem.
Um som familiar entra de rompão – o comboio entra num túnel como uma bala a ser disparada à queima-roupa. Mas não, não é isso. Um leve tilintar que se torna mais forte a cada batida.
Claro, como não poderia faltar. O som de cobre a bater no latão. Henry mal olha para trás para perceber que tem um cego a tentar ver caridade à sua frente.
O único problema? São duas da manhã e Henry Highsmith nunca sentiu tão pouca vontade de partilhar.
“De toda a merda que há na Terra, eles são os piores.” - diz uma voz, mesmo à frente de Henry.
Um sobressalto. Henry olha para a frente. Os seus olhos arregalam-se. Está a ver nada mais, nada menos que um cego. O cego! Com mais buracos nas roupas que moedas no latão.
Olha novamente para trás e para a frente, afastando o fumo do cigarro que está agora transformado numa gigantesca cortina de fumo.
“Como é que—” - tenta adivinhar Henry com o cigarro e uma voz grossa entre os lábios.
“Velhos truques. Não sei ver, mas sei andar.” – estica o copo para a frente – “Moeda?”
Estupefacto, Henry olha novamente para baixo. Pensa na hipótese.
“Desculpa, esqueci-me que só tens notas.” – diz o Cego enquanto Henry começa a afiar os punhos.
“Como é que sabes o que eu tenho ou deixo de ter?”
“Novos truques. Não sei ver, mas sei contar.” – responde o Cego com um sorriso na cara. – “E tu, sabes quanto tens aí?”. O cego bate com a sua cana na mala.
“O suficiente.”
“Suficiente para?”
“Suficiente para não te dar nada.” – ladra Henry enquanto fuma os últimos momentos daquele cigarro. Todo o fumo vai parar à cara do Cego que tosse prontamente.
“Que raio de Diabo és tu que não consegues aguentar um bocado de fumo?” – pergunta Henry com algum suor enquanto o cego só se ri.
“Diabo? Quem disse que eu era um Diabo?”
O chilrear dos carris intensifica-se.
A cana passa nas mãos de Henry que só com um pequeno toque a parte em dois.
“Mas que grandes mãos que nós temos!” diz o Cego, genuinamente impressionado com tamanha força.
“Deixa-me em paz. Agora!”
“Calma, carniceiro.”
Henry olha-o com alguma surpresa.
“Até para um cidadão de fora como eu, és famoso. Tem calma.” – diz o Cego – “Uma pergunta.”
O Cego ajeita os óculos. “Queres acreditar em mim?”
Henry Highsmith realça os seus punhos novamente. “Só depois de tu acreditares em mim.”
“Calma. Calma, carniceiro” – avisa novamente o Cego – “Fazemos o seguinte. Eu deixo-te ficar com o dinheiro.”
“Não que tenhas outra escolha.” – interrompe Henry.
“Não queres saber qual é a condição?”
Henry não está para ouvir nem mais uma palavra e lança um murro à cara do Cego. Antes de acertar no que quer que seja, as luzes do comboio vão abaixo. Henry falha o seu alvo.
“Só tens que sair deste comboio.” – diz o Cego que neste momento é o único que consegue ver.
As luzes voltam ao seu estado normal. Demasiadas para iluminarem apenas duas pessoas.
Isto se o Cego ainda lá estivesse.
III
O comboio viaja a uma velocidade vertiginosa. Não muito mais devagar, as mãos de Henry Highsmith destroem tudo o que veem à frente. Seja madeira, metal ou vidro – Henry corta tudo da mesma maneira como se estivesse à frente do seu habitual balcão. A única diferença sendo o sangue que nelas se encontra entranhado é agora o seu, escorrendo gradualmente entre vidro e lascas até manchar o cabedal preto da mala que é a última coisa que delas escorre, ficando presa com toda a dedicação à mão esquerda de Henry.
Henry pára por um segundo. A sua respiração, ofegante. E é neste momento que Henry se concentra. Onde pela primeira vez pára para pensar não só com a sua força bruta. Acusaram e elogiaram Henry Highsmith de muitas coisas, mas de ser inteligente nunca foi uma.
Mas agora, talvez tudo mudasse. Porque à sua frente, encontra-se o travão de emergência. Henry Highsmith levanta-se na sua direção, confiante. Estica o braço. E, com a mão direita...
…arranca violentamente o travão sem parar um milímetro do comboio.
Henry atira o travão com a toda a força para a extremidade oposta da carruagem, que não só vai mais rápido que o comboio como atravessa o vidro, apenas parando na carruagem seguinte. A carruagem do condutor.
O sangue já não é tanto e a força já não é a mesma, mas é o suficiente para fazer saltar qualquer material que prenda a porta. O vento é como uma besta indomável, entrando de rompante como se fosse tudo menos passageiro. E Henry, de rompante entra, na carruagem seguinte, ainda de mala em mão e sem gastar um segundo corre até à porta do condutor que ao primeiro contacto se estilha em mil pedaços.
A este ponto, a surpresa seria alguém estar mesmo a controlar o comboio. Em vez disso, um mar de alavancas que afogam a pequena mente de Henry Highsmith – pronto a continuar o seu trilho de destruição.
Em vez disso, um click suave. E outro. E outro.
Pouco a pouco, Henry desliga cuidadosamente todos as manivelas. O comboio perde velocidade, suspiro a suspiro até que respira em pleno na escuridão do túnel infinito.
IV
A dimensão do seu corpo é de tal forma pronunciada que nem os gigantes faróis do comboio conseguem fazer de Henry Highsmith mais do que um vulto nos túneis de Nova Iorque – que cansado e a deixar um rasto de vermelho no preto, transporta uma mala cheia de verde. Por agora, o único ponto brilhante no meio de uma imensidão escura que conseguiria engolir qualquer um, mesmo esse alguém sendo o melhor carniceiro de Brooklyn.
Não demora muito até que surja uma luz ao fundo do túnel e como cão atrás de osso, este carniceiro saliva até mais não. E, se a tempestade lá fora já parou, o contrário se pode dizer de Henry que acelera o passo a cada traço de carril.
Finalmente, uma estação. Não muito diferente de todas outras, mas para Henry Highsmith a sua definição atual de paraíso. E Coney Island não é casa – mas tudo é melhor depois de onde Henry esteve. Consigo, a sua dama de escolha. Vestida de cabedal preto.
Henry mete as mãos ensanguentadas na plataforma e sobe-se a si mesmo para um patamar mais alto. Sem pedra ou gravilha.
Do vazio, um alto estrondo ecoa pela estação. Henry olha para baixo e pela primeira vez, deixa cair a sua beldade que despe o seu verde por todo o lado. Logo a seguir, reencontra-se com ela no chão frio. O sangue quente que jorra é o seu único cobertor ao mesmo tempo que cobre os verdes de vermelho.
“Eu disse-te que esse dinheiro não era para ti.” – diz uma voz familiar quase mais alto que o cobre a bater no latão que carrega – “O que é que tu julgavas que irias fazer com esse dinheiro nas tuas mãos? Essas mãos!”
A única resposta de Henry Highsmith vem na forma de fôlegos cada vez mais esporádicos.
“Mas sabes que mais? O dinheiro não é para ti, nem para mim. Nem para o tipo que encontraste nessa mesma posição.” – diz o Cego de revólver em punho enquanto revista o carniceiro, ficando com o seu maço de tabaco e fósforos – “Mas obrigado, carniceiro. Por seres o meu maior prémio.”
O Cego acende um cigarro e recua de volta para o túnel, misturando-se instantaneamente com a perfeita escuridão.
Agora sim, o corpo de Henry Highsmith pagara o seu preço, não tivesse Henry Highsmith sangue nas suas mãos.