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O dia tinha aberto com uma discussão logo pelas sete da manhã. A minha tia tinha-me ligado a chorar tanto que mal conseguia respirar, nem sei como ainda assim arranjou maneira de me gritar. A sua mãe, a minha avó, tinha morrido. Ao fim de cinco penosos anos ela tinha-nos abandonado. Pousei o telemóvel na bancada e deixei a minha tia gritar, enquanto isso fui acender o meu primeiro cigarro do dia. Depois da minha mãe, a minha avó tinha sido a minha pessoa favorita. Aliás, várias vezes ao longo da minha vida, a minha avó tinha passado à frente da minha mãe nesse ranking afetivo. Ela deixava-me comer os chocolates que eu queria, enquanto que a minha mãe me dava um estalo na mão. Ela não se importava assim muito quando eu lhe mandava os vasos ao chão por acidente, já a minha mãe não me deixava ir sem um raspanete e um puxão de orelhas. E quando desisti da faculdade a minha avó disse-me que não me preocupasse, enquanto a minha mãe quase deitou a casa abaixo.
E no entanto, ao fim de cinco penosos anos, mais os quatro que tinha vivido com ela, já não tinha mais nada para sentir. Mesmo com a descrição desnecessariamente gráfica da minha tia, que a desgraçada da minha avó morreu sozinha a babar-se no Conde Ferreira, não consegui chamar uma única lágrima.
Também, não tentei.
Peguei no telemóvel e ouvi a minha tia dizer, surpreendentemente baixinho, Estás contente, não estás?
Nessa noite, adormeci sem grandes problemas. No entanto, às três da manhã acordei. Eram três da manhã quando os ouvi pela primeira vez. Estava sozinha, já deitada na cama com o cobertor puxado até ao nariz quando ouvi os gritos. Tão acutilantes, tão humanos, que pensei de imediato numa filinha desordenada de bebés babados e ranhosos a gritarem desalmadamente, agitando braços rechonchudos, gritando pela mãe e porque de tanto gritar já lhes ardiam os pulmões.
Mas não eram humanos. A cacofonia vinha do estridente miar duma ninhada de gatos.
Nunca poderia dizer porquê mas esta realização não me ajudou. Continuei a sentir o coração pesado, que de desenfreadas batidas tinha passado a dolorosas pancadas.
Puxei os cobertores por cima da cabeça e esperei que o ruído terminasse.
Contra os meus desejos, o coro continuou.
Cerrei os olhos a imagens de gatinhos feridos, talvez acabados de nascer, a lamber o pelo sem brilho da mãe que tinha trocado a sua vida pela deles.
Tinha de fazer alguma coisa. Mas vivia no terceiro andar dum prédio enorme sem elevador, a noite era escura e fria e eu não tinha bem a certeza onde estavam os sapatos. E a minha avó estava morta e eu tinha medo.
Lembrei-me da minha amiga Sandra que me tinha contado, já há anos atrás, que o gato da mãe tinha sido morto à pancada por uns miúdos com um punhado de pedras e muito tempo livre. Imaginei que o pobre Patudo, provavelmente miou, gritou, como estes gritavam agora.
Empurrei a testa contra a parede. O que queria era bater nela, abrir a cabeça e dormir. Mas aquelas almas berravam, berravam e o tinir daquele desespero punha-me a dar voltas na cama, a apertar a cara com mais força ora contra a parede, ora contra o colchão ora contra a almofada, quase até sufocar.
O dia de amanhã chegaria. Daí a três, três horas e meia, mais coisa menos coisa, tinha de me começar a preparar para o meu emprego banal que era já ali a duas ruas atrás deste inferno. A manhã chegaria, por isso esperei. Pedi perdão a um deus em que não acredito. E esperei.
Os gritos continuaram até às cinco. No que parecia ser o seu auge, a meio grito, tudo acabou subitamente. De repente, silêncio. Como se as últimas horas não tivessem acontecido. Silêncio.
No dia a seguir fiz questão de tomar o café no sítio onde os loucos e os bêbados do bairro se congregavam, o café Granada cujas paredes emitiam, a qualquer hora do dia, o cheiro a caril. A minha tia tinha deixado uma série de voicemails que eu tinha apagado sem ouvir. Até o meu tio me tinha ligado, ele que nunca prestou grande atenção à minha existência, nem mesmo nos anos em que sozinha tomei conta da mãe dele. Vi que a televisão estava a passar uma peça sobre estatísticas de violência doméstica e decidi ficar antes na esplanada. Desse assunto já sabia quanto bastava, estava por todo o lado, como os gritos dos gatos tinham estado ontem à noite.
Na esplanada fiquei horas a ouvir conversas, à espera que alguém falasse dos gatos. Bebi quatro cafés e um carioca de limão enquanto esperava. Ninguém comentava o sucedido, nem as pessoas que eu sabia que viviam nas redondezas. Se eu consegui ouvir, eles também tinham de ter ouvido. Ocorreu-me o pensamento algures entre o terceiro e o quarto café que talvez todos tivessem ouvido, talvez não existisse uma alma ali que não tivesse ficado tão perturbada quanto eu e por causa disso tinham todos decidido não comentar. Por ser demasiado bizarro.
Quando me aproximei do balcão para pagar o carioca, aceitando por fim a derrota às 19h30, quase que quebrei o pacto; quase que comentei a situação com a menina do balcão que tinha sempre um sorriso para oferecer com o pacotinho de açúcar. Mas depois de quatro cafés e um carioca, depois de umas parcas horas de sono mal dormido, com os olhos vermelhos a arderem das lentes que ainda não tinha tirado, achei que seria melhor simplesmente pagar.
Regressei a casa e sem jantar, sem trocar de roupa, enfiei-me na cama.
Sonhei com a minha primeira e única gata, branquinha e felpuda, amaldiçoada com o ridículo nome de Cebola só para chatear a minha avó, que não gostava de gatos ou de cebolas.
Ela foi a minha melhor amiga durante anos, durante os anos solitários a viver num isolamento quase total na aldeola da minha avó, que estava a uma câmara e um posto de bombeiros de ser considerada apenas um ajuntamento de casas separadas ora por troços de densa floresta ora por campos de cultivo vigiados por cães do tamanho de lobos. Eu tinha muito medo desses cães, sentinelas do inferno. Estava sempre dividida entre querer passar por certas casas e certas ruas com os fones a rebentar o heavy metal mais obscenamente gritante – só para me poupar e não ter de os ouvir rosnar – e o meu medo de não os ouvir, de não reparar que tinham saltado o portão e que vinham a correr na minha direção para me desfazer. Por isso caminhava rápido. Colava-me às mulheres que passavam com cestos de fruta, de legumes, de ovos; caminhava atrás do senhor José e da sua enxada e acertava os passos com os seus para que não desse por mim.
Sonhei que regressava a casa e que tinha a Cebola à minha espera, como fazia sempre. Deitava-se em cima do muro à espera de me ver e miava a sua canção que dizia bem-vinda a casa.
Tinha uns olhos inteligentes, brilhantes, que me viam mesmo, que me acalmavam sempre. E tinha, estou certa, um motorzinho dentro dela que a fazia ronronar super alto. Tão alto que quase nem dava pelos pratos que a minha avó mandava ao chão, ou pelas portas a bater, nem mesmo pelas pratas que voavam da janela da cozinha e aterravam no quintal, umas vezes entre as couves, outras no meio das cenouras. E quando a tempestade tinha passado e a minha avó se retraía para dentro do seu quarto a dedilhar o terço, era a Cebola que me fazia companhia enquanto eu fazia a colheita da prata e passava pelo laborioso processo de a limpar. Horas e horas a puxar lustre de terra, tal como a minha falecida mãe fazia.
Sonhei que segurava a Cebola nos braços, como no dia em que a trouxe de casa duma prima sobrinha de uma tia-avó amiga da minha madrinha, e que caminhava rápido até ao fim do corredor.
Sonhei que fechava a porta com o pé e trancada ficava, só pela força da minha vontade. E sonhei que dava a volta à cama do meu quarto na casa da minha avó e me sentava atrás dela, escondida, com as costas contra a parede e a Cebola ao meu colo, aninhadinha, nervosa. Daquela posição diminuída via a porta a abanar como se fosse sair disparada. Via-a rachar. A Cebola enfiava as unhas no tecido das calças, procurando alguma medida de conforto que as minhas festas tensas não lhe conseguiam dar, e miava, gritava. E no meu sonho esse grito fraturava-se em dois, três, quatro…
Acordei; segunda noite, três da manhã.
Lá fora a tortura dos gatos continuava, tinham começado onde tinham parado no dia anterior. Como se as horas entre as cinco e as três não tivessem existido.
Mas desta vez levantei-me. Puxei contra a escuridão e liguei as luzes todas, pus música, caminhei para trás e para a frente, de polar azul-bebé e botas de combate. Fiz todo o barulho que podia mas continuei a ouvi-los. Eles não seriam ignorados.
Não voltei a adormecer. Durante o dia que tortuosamente amanheceu, mal me aguentava em pé e a cabeça estalava-me pela falta de sono e como aviso da overdose de cafeína de que me aproximava.
Saí do trabalho e fui-me sentar outra vez na esplanada do Granada, certa que desta vez, alguém iria falar dos gatos.
Da mesa mesmo ao lado da entrada para o café ouvia a televisão aos berros com as notícias do dia, uma mulher fora assassinada pelo marido mas os detalhes perdiam-se graças à discussão da arbitragem merdosa do último jogo do Benfica. Os ânimos exaltavam-se na mesa de plástico que obviamente não aguentava com quatro homens a discutir ao mesmo tempo e até o cão de um deles se começava a agitar com o alarido. Do outro lado, à minha direita, duas mulheres cochichavam sobre a filha da Dona Joana que tinha engravidado do filho do engenheiro Silva –parecia-me que já as tinha visto, provavelmente viviam no edifício ao lado. Espreitei por cima do ombro, para dentro do café, dois velhos discutiam um com o outro, os cozinheiros riam entre si.
Fiz um gesto rápido à menina do balcão para pedir outro café e enquanto ela o tirava, lembrei-me duma história que me tinha sido contada há muito tempo. Já não sei como o assunto tinha vindo à baila, mas outra amiga tinha-me contado que um dia a sua tia tinha começado a ouvir o miar de um gato, assim do nada. Um miar muito assustado, aflito. Um grito duma criatura que está em pânico, a morrer. Um grito que pedia que alguém, quem quer que fosse, os salvasse. A confusão da sua tia tinha durado apenas um minuto. Rapidamente se tinha apercebido que o gatinho estava dentro da máquina de lavar.
Desta vez fiquei no café até às 20h30. Por essa altura já o café se parecia mais com um restaurante, com pessoas a optar por pratos fumegantes em vez de bolinhos e tostas mistas. Por essa altura já me tinha lembrado de mais cinco histórias diferentes de gatos que tinham morrido horrendamente, por descuido, mas na maioria das vezes por pura maldade. A história da minha tia e da bruxa, que nunca tinha conseguido reprimir por completo, era decididamente a pior de todas.
Quando fui pagar tive a coragem de perguntar à menina do balcão se por acaso ela tinha ouvido falar da situação com os gatos. É que já não durmo há duas noites, disse e ri-me um bocado histericamente. Ela não sabia do que falava, nunca tinha ouvido falar de tal coisa e contou-me, com o seu sorriso habitual, que nem sequer estava habituada a ver gatos nas redondezas.
Acenei, pois tem razão, realmente.
Deixei o troco e saí.
A minha avó ouvia coisas. Não eram vozes, coisas. Passos, portas a ranger, coisas a partir, uma infinidade de coisas. Sempre achei que eram as memórias dela que com os anos começavam a ganhar terreno sobre a sua mente; às vezes gritava o nome do marido para o lembrar de levar o almoço, outras vezes dizia-me para não abrir o portão, que quem estava a tocar à campainha era uma das putas do meu avô. Ninguém está a tocar à campainha, era o que eu dizia, no início, quando ainda achava que valia a pena. Ela gritava sempre que estavam sim, que não era louca e eu tinha de a impedir de ir a cambalear até à rua com a bengala no ar para bater numa mulher que não estava ali.
A enfermeira que nos visitava umas três vezes por semana, uma mulher que tecnicamente já não exercia desde o acidente de carro dos filhos, que tinha morto um e paralisado o outro, era simultaneamente um dos meus pesadelos e um dos meus maiores alívios. Enquanto ela lá estava eu podia ir para o jardim com a Cebola e sentar-me debaixo das árvores que a minha mãe tinha plantado enquanto fumava e a Cebola saltitava entre as couves. Uma paz temporária que acabava assim que me tinha de despedir dela, altura em aquela mulher, de olhar verde e inflexível, me aterrorizava com as suas conversas sobre a minha avó, sobre como era melhor que ela voltasse a ser internada no Conde Ferreira porque caso contrário, um dia ainda se ia matar como a minha mãe. A sua mãezinha, como ela dizia. E abanava a cabeça, dizia que eu tinha muita sorte por ela se ter atirado ao mar, em vez de a encontrar na banheira de pulsos cortados, ela conheceu muitos casos desses e assegurava-me que eram terríveis. Era uma cabra insensível e por muito que lhe quisesse berrar, a certeza com que ela falava silenciava-me sempre. Ao fim de dois anos a viver com a minha avó estava gasta, mas não era capaz de a mandar para o sítio que ela mais odiava, nem a minha tia nem o meu tio mo teria permitido. Por outro lado, se ela tivesse sindo internada, talvez ainda tivesse mãe. E daí talvez não, quem pode dizer.
Mas o pior desta enfermeira, o que verdadeiramente me marcava e me assombrava em pesadelos, era a maneira como ela olhava para mim, como se tivesse a certeza que eu acabaria como a minha mãe ou a minha avó.
As noites que se seguiram eram iguais, exceto nalguns detalhes, naquelas coisas que viviam no meu subconsciente e vinham à superfície quando, por cansaço extremo, perdia a consciência, às vezes na cama, outras vezes no sofá. Cheguei até a dormir na casa de banho, por querer acreditar que talvez ali não fosse ouvir os gritos tortuosos dos gatos que tinham vindo de nenhures e permaneciam algures longe de tudo e todos. Nestas noites era sempre visitada pela Cebola, que me vinha lamber as mãos, dar turras e mordiscar-me os dedos. Fazia-me segui-la, pegar nela e deambulava com uma leveza que já não tinha quando estava acordada. Mas acabava sempre naquele quarto claustrofóbico em casa da minha avó; sempre, a ver aquela porta que ameaçava quebrar sob as pancadas duma bengala que não lhe dava descanso. Acabava todas as noites de olhos arregalados a ver as fendas cravarem-se mais fundo na madeira, à espera do momento em que porta fosse abaixo e a bengala caísse sobre mim. Acordava sempre antes desse momento com os gatos a gritar. Foi por volta do sexto ou do sétimo dia que adormeci de olhos abertos e caí abaixo das escadas.
Ao acordar, pela primeira vez no hospital, sabia que eram três da manhã antes sequer de ter olhado para o relógio. Também sabia que se nos segundos que se seguissem ouvisse um grito que fosse, um só miar estridente, me ia atirar da janela abaixo. Por muito que os gatos chamassem por mim, por muito que me pedissem para os salvar, eu não conseguia salvar ninguém. Além disso, que injusto era, ter de ser eu a fazer isso. Porquê eu?, perguntei-me, deitada na cama a olhar para o teto. Tinha os olhos inchados e mal conseguia ver o que fosse pelas frestas que eles se tinham tornado, mas via as caras dos meus vizinhos. Via as duas senhoras que cochichavam e os homens que se punham lá fora à porta a fumar à noite e de manhã cedo antes do trabalho, via o dono da loja de quinquilharia da esquina. Todos eles vivam perto de mim, porquê é que tinha de ser eu a fazer alguma coisa? Até na menina do café começava a pensar com rancor. Mentirosa, ouvia-me dizer numa voz que me lembrava a da minha avó. Mentirosa.
Os outros também ouviam os gatos, estava certa, mas ninguém queria fazer nada, ninguém se mexia e os gatos continuavam a morrer todas as noites, entre as três e as cinco da manhã, e estavam todos contentes a fazer de conta que isso era normal.
Ao menos naquele hospital não se ouviam gatos. Não se ouvia nada.
Respirei de alívio. Doía-me tudo mas há dias que não me sentia tão relaxada, tão feliz. Mal conseguia ver ou mexer-me mas finalmente, havia silêncio.
Não sei dizer quantas horas já tinha dormido pela altura em que me lembro de estar conscientemente acordada, apenas que naquele instante queria ficar acordada para saborear todos os segundos de belo e puro silêncio.
Muito levezinho, mais leve que o meu lençol, ouvi um ronronar que teria reconhecido em qualquer altura ou lugar. Estendi o braço e fui encontrar o pelo familiar da Cebola, tão fofo e reconfortante. Tal como eu me lembrava.
A minha menina…
Sorri, descansada.
Não a conseguia ver bem, estava demasiado escuro e ela não passava de uma adorável bola quase luminescente ao meu colo. Estava quase a adormecer quando lhe senti algo molhado, pegajoso no pelo. Mas ela continuava a ronronar e eu deixei-me dormir.
Ainda não tinha amanhecido quando acordei com o som de passos furiosos. Abri os olhos o mais que pude. Luz azulada, clara, coloria o teto, caia sobre as plantas encostadas à parede, plantas que não estavam ali, que não pertenciam num hospital. Eram um par de roseiras cujas rosas brancas haviam sido tingidas por esta luz fria, roseiras como as que a minha mãe tinha no jardim de casa da sua mãe. Lembro-me bem de as ver tratar delas. E de chorar quando a via a cortar ramos para evitar que elas se apoderassem do caminho de pedra. A Cebola tinha desaparecido. Os passos continuavam, ora da direita, ora da esquerda, acima, debaixo da cama, da direção da porta. Tentava acompanhar e disso só resultou o despontar duma dor de cabeça. Gemi baixinho, chamei pela Cebola, mas sabia que ela não voltava. Uma voz familiar acabou com o caminhar, uma chamada de atenção.
Do lado direito, deitada sobre mim de olhos verdes muito arregalados, a enfermeira da minha avó chamava-me com aquele tom curto dela, dizendo Menina e nunca o meu nome. Gritei, mas a cara dela permaneceu imóvel, como se fosse feita de pedra. Sob aquela luz que se misturava com as sombras a sua pele parecia quase cinzenta.
Eu não disse, começava ela sem abrir a boca, eu não tinha razão?
Ria-se sem mexer os lábios.
Fui sedada aparentemente, não me lembro. Só sei que dormi imenso e quando voltei a acordar durante mais do que cinco minutos, o quarto de hospital já não tinha roseiras nem a enfermeira da minha avó. Apesar de ter recuperado horas de sono, parecia-me que os médicos e enfermeiras pensavam que parte da minha sanidade já não podia ser recuperada. Podia ser a paranoia a falar, lá para o fim a minha avó também se tinha tornado extremamente paranoica ao ponto de enfiar toda a comida que tínhamos em sacos do lixo, convencida que estava envenenada. O funeral já devia ter acontecido. E eu não tinha ido. Hm. Ainda havia algumas coisas que eu queria dizer, mas talvez fosse melhor fazê-lo sozinha, longe da minha tia que me ia ladrar na cara e provavelmente expulsar da igreja se eu lá tivesse tentado ir. Não me visitou, ninguém visitou e isso não me surpreendeu.
Apesar da paranoia e da loucura que sentia a rondar, tal como a minha mãe e a minha avó deviam ter sentido, ainda estava sã o suficiente para não falar dos gatos que gritam. Pelo menos não o fazia acordada. Mas as minhas colegas de quarto queixavam-se a todas as enfermeiras que eu passava a noite a falar dos gatos, dos gatos, dos gatos que têm de ser salvos, os gatos, os gatos.
Uma das enfermeiras tentou perguntar-me acerca destes gatos, brincava comigo e dizia-me que gatos não podem gritar. Como ela se parecia demasiado com a enfermeira da minha avó, não lhe disse nada. Olhando para trás, percebo que a única coisa que tinham em comum eram os olhos verdes. Mas não conseguia deixar de ouvir o riso da enfermeira da minha avó, das certezas dela e imaginava que perversamente ia ficar muito feliz se eu fosse parar ao Conde Ferreira. Esta havia de ser a última vez que entrava num hospital, só para a foder. Nunca tinha gostado de mim e eu sei que falava mal de mim à minha tia, e que a minha tia tinha todo o prazer em alimentar essas conversas. Sou preguiçosa e estupida, má e egoísta, tenho alguma coisa partida dentro de mim, provavelmente foi de vergonha que a minha mãe morreu. Se calhar se bebesse menos e parasse de me envergonhar a frente da família…
A única pessoa de quem eu gostei naquele hospital foi uma senhora nos seus quarenta, que lá chegou histérica, com um braço partido. Ouvi uma vez as enfermeiras a murmurar entre si, uma achava que era violência doméstica, de certeza. Essa senhora, cujo nome nunca saberei, foi a única que nunca se queixou dos meus delírios noturnos. Contou-me, no último dia em que lá esteve, que também tinha tido uma gata. Magrinha e de olhos muito meigos, castanhos. O marido odiava-a e estava sempre a deixar a porta aberta na esperança que ela fugisse e um dia nunca mais voltasse. E foi isso mesmo que aconteceu, um destes dias tinha encontrado a gata espalmada no asfalto por um carro que permaneceria para sempre anónimo. Agora, disse-me, mesmo antes de sair, Agora temos um cão.
Voltei a casa com a certeza que o meu período de descanso tinha acabado. Tão certa que nem me dei ao trabalho de vestir o pijama. Preparei um café e vesti umas calças de ganga. Calcei as botas e pus o hoodie preto. Troquei as lentes pelos óculos. Bebi o café. Guardei a lanterna na mala e esperei pelas três.
A minha tia acreditava no sobrenatural e tinha medo de bruxas. O medo provavelmente vinha da minha avó que, depois do primeiro esgotamento que teve, começou a dizer que via sombras, que era uma bruxa que entrava lá em casa para lhes deitar veneno no leite. Como resultado, ninguém naquela casa bebeu leite durante uma temporada e foi plantada a semente na cabeça da minha tia de que as bruxas existiam. As bruxas, dizia a minha avó, às vezes mascaravam-se de gatos pretos. E a minha tia, que nunca esteve no hábito de questionar nada, aceitou aquilo enquanto verdade inabalável e ainda hoje tem medo de gatos pretos. Mas tanto quanto sei, só chegou a matar um.
Ao fim de tanto tempo, do que me pareciam, do que sentia terem sido séculos de tortura, aqueles gritos tão humanos ainda conseguiam abrir feridas. Sem falhar, conseguiam sempre encontrar novos centímetros na minha alma que ainda não tinham sido marcados.
Esta seria a última noite, estava decidida. Saí à rua às três da madrugada e encontrei-as frias e desertas. A luz pálida da lua não conseguia tocar o chão – tive de recorrer à lanterna. Comecei a procurar os gatos, primeiro a passo rápido, mas depressa a urgência dos seus gritos, agora tão próxima, me fez correr. Ouvia a voz da minha mãe enquanto me contava a história que me tinha marcado para sempre, que me tinha feito odiar a minha tia e o meu tio. Descia a rua a correr enquanto a minha mãe me contava que, um dia, a minha tia tinha dito, com toda a autoridade, que estava farta de bruxaria lá em casa, queria beber leite outra vez e a avó já nem em casa dos outros queria que ela bebesse. E o meu tio, meio a brincar, meio a sério disse que se calhar a bruxa era a gata preta que passava pelo jardim e gostava de dormitar em cima do galinheiro, por baixo da árvore dos dióspiros.
A gata prenha?
Sim, essa.
E foram de noite os dois a correr, como eu corria agora, à procura da gata, como eu corria agora, guiados na noite pelos gritos de uma ninhada, como eu era guiada agora, aventurando-se por floresta densa, como eu me aventurava agora por uma cidade de edifícios altos e sombras maiores.
O som das crias tinha-os conduzido a um buraco criado por uma série de grossas raízes, a mim, a uma estação de metro encerrada para construção já há um ano.
Olhei para o relógio que se erguia como sentinela à entrada. Eram três e meia. A lua parecia estar a ganhar mais força, assim como os gritos dos gatos que me chegavam das profundidades.
Desci os degraus e pus a mão no gradeamento que cedeu ao meu toque, como se de bruxedo se tratasse. Abria-se diante de mim toda uma vastidão poeirenta.
Foi a minha mãe que, de joelhos e a chorar, implorou aos irmãos que não matassem as crias. Para a mãe era demasiado tarde. Tentara e fora atirada contra uma árvore – ficou com uma cicatriz na têmpora até morrer por causa desse embate. A minha tia acedeu, os gritos dos bichos sujos de sangue perturbavam-na e agora, que a bruxa estava morta, só queria sair da floresta. O meu tio ainda não estava satisfeito, mas deixou o pau ensanguentado no chão e foi o primeiro a virar costas. Mais tarde, a minha mãe soube que ele e os amigos tinham voltado à floresta, pegado nas crias e que as tinham arremessado à Maria Sardenta, uma miúda com os dentes tortos de quem ninguém gostava.
O feixe de luz da lanterna iluminava em pequenos troços a carcaça do que antes tinha sido uma estação de metro movimentada. Os gritos tinham-se metamorfoseado em pequenas súplicas que me apertavam o coração que batia desenfreado.
Movia-me rápido, aos tropeções, entre pedras e sacos e tubos e barras de metal. Tinha de fazer um esforço tremendo para os conseguir ouvir. Passei por paredes depiladas, desprovidas dos seus coloridos azulejos, paredes esburacadas que continham uma escuridão ainda mais profunda do que a que me rodeava. Lembrava-me, sem querer, de letreiros e pedaços de anúncios dos quais pouco ou nada restava. Sobretudo nada.
Foi na plataforma que comecei a ouvir o trautear de uma bengala. E por momentos deixei de ver a plataforma, só via a porta do quarto que agora era mais fendas que madeira, a pulsar com cada embate. A luz tremia-me nas mãos, os gatos tinham-se calado. Tinha chegado ao fim?
As batidas da bengala aproximavam-se mas a minha luz não conseguia encontrar a fonte. O barulho entrou em crescendo, tinha de segurar a lanterna com as duas mãos e então, a luz apanhou um vislumbre preto que se esfumava e movia em torno da luz, evitando-a. Era uma silhueta de fracos contornos e a única coisa palpável, a única coisa que parecia real era a bengala que empunhava. A bengala que agitava e bania a luz. Tentei recuar, pus mal o pé e acabei no chão de lanterna partida. A porta tinha rachado por fim, com um estrondo que explodiu nas minhas costas. Os meus gritos perderam-se na estação do fim do mundo, mas acordaram os gatinhos que mais uma vez se faziam ouvir. E foi isso que abrandou o golpear com a bengala. Descruzei os braços que me protegiam a cara e de olhos cerrados, arremessei a lanterna contra algo; bateu nalgo, ouvi o banque, senti as vibrações pelo braço acima mas não sei... Foi uma bengala? Uma cabeça?
As luzes que balançavam do teto ligaram-se com um zumbido. Os gritos já não eram gritos, era um miar contínuo, triste, que ganhou ecos, dois, três, quatro… Saltei para linha do metro onde jazia uma figura de linhas incertas que se apagavam diante dos meus olhos. A bengala tinha ficado perdida para sempre, enterrada na escuridão. No fundo do túnel pequenos pontinhos luminescentes passeavam em filinha, ondulavam em filinha, seis, sete, oito…
Saltitavam juntos, miavam em conjunto, um coro que iluminava a estação; fui como uma falésia e eles melódica onda, dividiu-se em duas linhas a procissão de gatos, uns sem olhos, outros sem cauda, passou um que tinha o torso queimado e outro que caminhava completamente encharcado, e outro ainda cambaleava com a cabeça rachada.
Estava sozinha com os dez, vinte, trinta gatos que miavam e ronronavam. Estava sozinha e chorava por mim, por eles; eles que brilhavam com uma luz branca que vinha de dentro, que lhes adivinhava os seus pequenos esqueletos.
Quando saí da estação esperava que o sol se estivesse a levantar mas continuava escuro como breu. Subi as escadas. Parei para limpar os óculos e olhar o relógio. Eram 3h30. Não tinha passado tempo nenhum e no entanto não se ouviam mais gritos. Perguntei-me quem é que teria razão, se o que se estava a passar era loucura como a enfermeira dizia, se bruxaria como a minha tia acreditava. Perguntei-me se iria acabar no Conde Ferreira, talvez merecesse isso. Afinal de contas foi para lá que mandei a minha avó. Talvez isto fosse vingança?
Comecei a caminhar, precisava de dormir, de descansar este corpo golpeado.
A minha avó tinha-se tornado má, foi a doença, eu sei, e mesmo assim mandei-a embora para não me tornar também eu má. Deve ter morrido a odiar-me. Como eu a cheguei a odiar pela morte da minha mãe, como odiei a minha tia e o meu tio por passarem a responsabilidade de tomar conta da avó para mim. Como odiei a enfermeira por me condenar com as suas certezas.
Cheguei a casa e mal tinha erguido a cabeça, tive a resposta a uma das minhas questões. Vi uma coisa branca a sair disparada da janela do quarto, a fazer um arco perfeito que eclipsou a lua. E lembrei-me de estar no jardim agachada na terra, a apanhar a prata, os garfos e os pratos e as facas e de ouvir o vidro a partir com um estrondo e um guincho e antes que pudesse levantar a cabeça já a minha Cebola tinha aterrado, coitadinha, entre as couves e as cenouras.
A alvorada do dia 11 de Setembro de 2200 d.c. levanta-se preguiçosamente.
Tudo o que resta da população de seres humanos e da sua espécie encontra-se na Hiper-pólis de São Paulo com os seus 70 Milhões de habitantes.
Evento! Toda a cidade é destruída. Toda? Não. Sobra uma nobre e estóica fachada dum velho edifício que deixa a sua pele arquitectónica intacta no centro histórico da cidade.
No parapeito deste edifício (doravante chamado CEX) poisa uma colorida ave. Ela chilreia alegremente mas, apercebendo-se da morte basculante e da destruição que ascende do solo às nuvens que se formam com as toxinas e poluição à sua volta, esvoaça para longe daquele cenário dantesco.
De repente, no CEX, no rés-de-chão do edifício, ouve-se uma explosão sonora.
Numa divisão praticamente no negro, estranhas cápsulas cospem para o ar ácido clorídrico que emana das baterias e motores que as alimentam, o ar é irrespirável. Uma cápsula apresenta movimento. A cápsula é branco-frigorífico. É uma cápsula criogénica. A cápsula alimentava-se de um campo térmico. Contudo, devido ao Evento, todos os sistemas eléctricos se desligaram e mesmos os fios e cabos se desligaram e desconectaram, como ervas daninhas digitais mortas.
A divisão ferve e no canto do nada, pouco, ou nada se vê. No interior não existem janelas nem portas. A luz marca meia presença. O Evento provocou a extinção do sistema de suporte de vida, que a electricidade mantinha vivo através do campo térmico. Os seres vivos que aí jaziam dormentes, estão agora mortos. Contudo, os fios da cápsula pertencendo à cápsula do modelo Yoakim 33 ainda tem algum campo eléctrico que mantém a cápsula milagrosamente a funcionar, mesmo se em modo de preservação de energia.
Um som que ecoa na sala, escuta-se. É um cacarejar de galo. O galo tinha seguido o calor e odor da fonte de energia da cápsula sobrevivente e aí marcara o seu território, urinando à sua superfície. A urina reactivou a corrente eléctrica nos fios, produzindo um curto-circuito, o que fez com que a cápsula voltasse a ter ‘vida’. A tampa de aspecto funerário encontra-se aberta e no seio dela encontra-se um espécimen humano, Yoakim 33. Em vida era um alto diplomata que defendia os interesses da selva amazónica contra os avanços consumistas que crescentemente compravam porções da selva amazónica do tamanho de países Europeus, para ficaram com os seus dividendos naturais e fósseis. Há 150 anos atrás, Yoakim estava a caminho da ONU para impedir que o último grande lote de floresta tropical fosse comprado por uma multinacional. Tivera um ataque cardíaco en route e ficará em coma num hospital da mesma São Paulo. Como tinha credenciais de diplomata pode ser criogenado. Um homem de 40 e poucos anos, de baixa estatura, careca e com uma copiosa barba.
Está nu mas tem um boné dos New York Yankees na cabeça que lhe tapa meia cabeça. Neste momento, o dito galo a que juntam mais alguns mordiscam avidamente no corpo nu de Yoakim. Depois de terem marcado o seu território foram atraídos pelo odor corporal de Yoakim. Yoakim apresenta duas feridas, uma na coxa de tamanho considerável e uma mais pequena no ombro. Yoakim está inconsciente ainda sedado, mas contorce-se com dores, até a um momento, onde um nervo é tocado e acorda. Os seus gritos são tão fortes que fazem estremecer as paredes e o tecto desta mórbida e escura divisão.
Yoakim desperta aterrorizado. Ele não vê nada além da pouca luz de presença que emana da sua decrépita cápsula, que mal ilumina o seu corpo. Não vê mas sente algo com peso em cima de si. Nomeadamente na sua coxa. Ele tacteia o seu corpo até à origem da dor até chegar ao pescoço dum galo. Agarra-o e tenta encontrar algo com o qual se possa defender. Vira-se para os lados e descobre um kit de sobrevivência, ao lado há um pequeno machado de segurança, caso a abertura automática e a manual não funcionasse. Degola o galo com regalo.
De seguida, tenta encontrar uma fonte de luz para tentar sair desta divisão claustrofóbica e fedorenta. Mas o espaço está tão escuro que não consegue dar dois passos sem tropeçar em algo. Yoakim impaciente começa a tossir e a sufocar naquela atmosfera nefasta. Volta à cápsula e atira para o chão tudo o que não seja eventual fonte luminosa. Enquanto está a atirar coisas para o chão uma delas acende-se. Era uma lanterna. Baixa-se devagar e apanha-a. Aponta-a e com um movimento panorâmico cobre a divisão toda. O que vê não é agradável nem tranquilizador.
As paredes estão repletas de caixões translúcidos dispostos verticalmente com seres humanos e animais mortos. Vomita com intensidade. Procura uma saída. Aponta para uma cápsula entreaberta e vendo um espécimen com roupa e calçado em bom estado, decide retirar-lha. Vestido, calçado e munido de machado e lanterna avança ao comprimento da divisão em busca duma qualquer saída. Desesperado por não encontrar saída visível, começa a destruir os túmulos translúcidos com raiva, um a seguir ao outro. Ao destruir um, observa através da poeira um rasgo de luz que emana dum pequena portinhola localizada na parte inferior de um dos túmulos. Parece talhada para anões. Com a ajuda do seu machado, abre-a. Atrás da porta há um corredor muito escuro e muito calado, que desce. Começa a percorrer, a medo, pé ante pé. Com susto, encontra um pedaço de lenha no percurso e resolve atirá-lo com a máxima força para o ponto mais distante do corredor. Não ouve qualquer som, o que significa que o túnel desce muito e é profundo. Decide contudo continuar pois aqui o ar é respirável e o ar mais húmido e agradável. Ao cabo de três minutos, decide parar, pois as suas feridas não lhe dão descanso, retira alguma lama das paredes argilosas do túnel cavernoso e esfrega na coxa e no ombro. Volta-se a vestir e continua a avançar. Depara-se com uma bifurcação. Uma está mais quente e outra mais fria. Decide avançar pela mais quente. O caminho começa a ter uma inclinação positiva e ele sobe-o. No fim cheira lhe a queimado e não há passagem. Com o machado desbrava a terra e pedras que tem à sua frente, até que um tsunami de luz inunda lhe a retina e o túnel dá lugar a uma cratera de destroços. Yoakim avança até ao exterior com sofreguidão. Com os olhos fechados ele enche os pulmões com o ar exterior de uma forma quase infantil. E assim permanece alguns minutos. Quando os abre, petrifica.
A cidade que outrora inundava aquela área toda numa infinita paisagem de betão e vidro desapareceu completamente e a vista agora completamente desafogada permite ver que tudo fora terraplenado e apenas uma estrutura se mantém erecta, a fachada do CEX. Chora compulsivamente. Acordara ele no meio daquele inferno de máquinas artificiais e morte demente e obscurecida para no exterior não encontrar mais que morte calada espalhada por toda uma cidade. Não havia pedra sobre pedra…sem água e comida, não chegaria ao fim da noite.
Numa árvore queimada, junto à fachada, observa um pássaro que sacode água da sua plumagem, pendurado num ramo duma árvore que parece mais um esquisso duma árvore, do que uma real árvore. Uma ameba de esperança poisa em si. O pássaro descansa despreocupadamente no ramo. E Yoakim vai ao seu encontro. Mas com a sua forma desajeitada, espanta-a e ela esvoaça para fora do seu campo de visão. O desespero ajoelha-o. O sol é momentaneamente tapado por uma figura negra que passa. É uma ave de grande envergadura que transporta algo no seu bico, ela pousa com a precisão dum helicóptero ao pé de Yoakim e baixa a cabeça como quem faz continência e um frasco sai do bico para as mãos de Yoakim que sem questionar o conteúdo do frasco ingere o precioso líquido de um só trago. Ele agradece ao pássaro e vê-a afastar-se. Estafado encosta-se a uma rocha que está próximo dele e deita-se no chão.
Dorme toda a noite até ao dia seguinte nascer.
Quando desperta, sente uma fresca brisa a roçar-lhe as faces. E entreabre os olhos, um após o outro com agrado. Descobre então que está a voar, transportado no dorso duma corvo gigantesco. Yoakim quase cai quando se apercebe quão alto estão a voar. Mas as penas são suficientemente espessas para que ele se possa agarrar. Passados alguns minutos de voo em altitude, o corvo começa a sua descida, em espiral negativa. Mal tocam no solo, Yoakim corre com todas as forças que ainda lhe restam até uma estrutura parecida com uma gruta para se abrigar. Após recuperar o fôlego e acreditando que está fora de qualquer perigo, senta-se a descansar. Enquanto lhe passam pelos olhos flashes do que lhe acontecera nas últimas 24 horas. Sente a terra a tremer. Não vê nada no exterior, a não ser uma floresta. O som vai aumentando de intensidade, até que se torna ensurdecedor. Pelo canto do olho vê urtigas do tamanho de girassóis a correrem como um exército, precipitando-se para a floresta. Não acredita no que os seus olhos vêem. Fecha os olhos e volta a olhar para a floresta, a cauda da legião de urtigas acaba de entrar na floresta e desaparece completamente entre a vegetação. O dia já vai velho e a luz começa a partir para Oeste. Pondera as suas hipóteses: ora arranja coragem e aventura-se floresta adentro eventualmente encontrando algo que se assemelhe a comida (mas arriscando que alguma criatura lhe faça mal) ou regressa ao resguardo uterino da gruta que lhe dá conforto e providencia abrigo dos elementos, mas não lhe oferece qualquer sustento nutritivo de relevo. Decide apostar na gruta. Vira-se, liga a lanterna, afastando-se progressivamente da entrada e vai percorrendo a gruta cuidadosamente. A dado momento, observa uma luz ténue ao fundo da gruta que se vai intensificando à medida que se aproxima dela. Desliga a lanterna e chega ao fim do percurso. Existe uma porta retroiluminada. Yoakim transpõe a porta e é imediatamente é agarrado por dois vultos que o prendem. A porta fecha-se atrás dele em silêncio.
Deixei o carro à saída de Sintra e fiz o resto do percurso a pé. Fui andando cuidadosamente pela berma da estrada até encontrar o muro da quinta. Continuei mais um pouco e do escuro surgiu o André, tão de súbito que me assustou.
“Calma, sou só eu. Vamos lá!”
Colocou às costas a mochila que tinha no chão e eu segui atrás dele durante umas dezenas de metros até que ele parou e disse: “É aqui.”
O muro tinha naquele ponto umas pedras salientes que o tornavam muito fácil de escalar. Rapidamente estávamos dentro da quinta.
A lua já tinha nascido, e fomos seguindo sempre pela berma dos caminhos, utilizando a sombra das árvores, na direcção do Poço Iniciático. Chegados à abertura do Poço, dei comigo a pensar como raio tinha vindo parar a esta aventura…
……………………………
Desde muito novo sempre gostei de cenas ligadas ao oculto: histórias de fantasmas, filmes de terror, coisas assim. Isto fez-me conhecer muita gente com os mesmos interesses, em encontros literários, festivais de cinema, na Net…
Já não me lembro em qual delas conheci o André, e ao longo dos anos fomo-nos tornando amigos.
Tendo eu próprio como hobby a escrita, o ocultismo interessava-me como tema de ficção, como um faz de conta, como uma área com potencial para produzir narrativas interessantes. Foi com alguma surpresa que tomei consciência de que algumas pessoas realmente acreditavam em algumas daquelas histórias.
Uma dessas pessoas era o André.
Falava-me de vez em quando de um seu tio-avô, grande estudioso das ciências do oculto, que se correspondia com ocultistas de todo o mundo e organizava sessões de espiritismo. Esse seu antepassado vivia num solar na Beira, onde B ia com alguma frequência pesquisar a biblioteca que lá tinha ficado. No regresso de uma dessas visitas encontrei-o entusiasmado.
“Já te disse que a biblioteca do meu tio-avô é um manancial de literatura ocultista. Imagina o que lá descobri desta vez!”
Com o que me pareceu verdadeira reverência, tirou da pasta que trazia um livro que me passou para as mãos. Encadernação a couro, tinha na capa escrito em letras douradas, ‘O Verdadeiro Método de Invocar os Mortos e Outros Espíritos que Habitam o Mundo do Além, escrito por O Guardião do Portal, impresso em França no ano MDCCLXXX’. Folheei-o rapidamente, e pareceu-me um repositório de receitas do tipo Livro de São Cipriano, mas obviamente mais antigo. Claro que não disse isto a André; elogiei o livro e acrescentei qualquer coisa do género “A biblioteca do teu tio deve estar cheia de preciosidades” e ficámos por aí.
Estive algum tempo sem ver o André. Quando me apareceu subitamente no café onde costumo parar, vinha eufórico.
“Pá, tenho andado a estudar o livro que te mostrei da última vez. Muito detalhado, com descrições precisas dos procedimentos. Já preparei uma invocação e preciso da tua ajuda.”
“Preparaste o quê? E quem te disse que eu estava disposto a alinhar nisso, o que quer que seja?”
“Tens de vir, é o teu autor favorito, Edgar Allan Poe!”
“O quê, tu vais invocar o espírito de Poe?”
“Oh, yeah…”
“Para lhe perguntar o quê?”
“Bom, ainda não pensei muito bem… Oh pá, mas um tipo que morre aos quarenta anos tendo escrito o que ele escreveu, deve ter muita coisa a dizer…”
“Isso vai dar merda…”
“Não vai nada, pá! E descobri o sítio ideal para a invocação: o fundo do Poço Iniciático, na Quinta da Regaleira. E estive a fazer uns cálculos, e depois de amanhã uma altura óptima, porque a lua cheia vai passar praticamente na vertical do Poço por volta da meia-noite.”
Nem sei bem como, mas o tipo conseguiu espicaçar-me a curiosidade até obter o meu acordo em o acompanhar nesta aventura idiota.
E aqui estávamos nós a entrar no Poço Iniciático.
……………………………
André descia à frente com uma lanterna. Comecei a contar os degraus mas quando cheguei a cem escorreguei, porque o piso ia ficando mais húmido, e com o esforço para me equilibrar distraí-me na contagem. Mais um pouco e chegámos ao fundo do Poço.
André pousou a lanterna no chão e da mochila tirou 5 velas, que dispôs em círculo, usando como referência pontos da rosa dos ventos embutida no chão. Quando lhe chamei a atenção para o facto de as velas não estarem equidistantes, respondeu-me que no livro dizia que isso não era importante, e eu calei-me.
Tirou da mochila um livro que colocou no centro da rosa dos ventos, e explicou-me que era o volume de contos de Poe recentemente editado. Enquanto realizava estas operações olhava para cima, para a abertura do Poço, com alguma ansiedade. Até que vimos a lua começar a surgir no buraco negro da abertura.
Nessa altura despejou sobre o livro gasolina de um frasco que trazia no bolso e pegou-lhe fogo. As chamas rapidamente ganharam altura.
Aí começou a entoar uma ladainha numa língua para mim desconhecida, presumo que fosse a invocação que tinha aprendido no livro da biblioteca do tio-avô. Pelo meio só reconhecia de onde em onde as palavras Edgar Allan Poe.
De súbito levantou-se um vento no fundo do poço, que apagou as velas e o fogo que consumia o livro e perante nós apareceu Edgar Allan Poe, ou a sua imagem, e era óbvio que não estava satisfeito.
“Estúpidos viventes, por que viestes perturbar o meu repouso? Não fazeis a mínima ideia do tipo de energias com que estais a interferir! A fronteira que separa os nossos mundos é muito fina e pode facilmente romper-se com as vossas acções irreflectidas. De facto neste preciso momento aproxima-se Lovecraft acompanhado das criaturas medonhas fruto da sua imaginação. Não sei se conseguirei segurá-lo enquanto a fronteira se reconstitui. Fugi daqui, imbecis inconscientes, enquanto é tempo!”
Corremos para o início das escadas e subimos os degraus a correr tanto quanto podíamos. Entretanto o Poço era varrido por um vórtice, o ruído que fazia parecia o reactor de um avião a meia dúzia de metros. Só quando chegámos à entrada do poço o movimento do ar amorteceu.
Fizemos rapidamente o caminho de regresso até ao ponto onde tínhamos saltado o muro. Chegámos aos carros e cada um foi para casa.
……………………………
Não tornei a falar com o André nem tenho grande vontade de o fazer. Naquela noite, por culpa dele, apanhei o maior susto da minha vida!
Também nunca mais voltei à Quinta da Regaleira…
Brooklyn, Nova Iorque. 1949
A lua cheia brilha no céu e as nuvens decoram-na que nem manchas de algodão preto. O cheiro da chuva ainda paira no ar e em Henry Highsmith, o carniceiro mais famoso deste lado de Nova Iorque. Agora e ao longo de mais de duas décadas que Henry corta as carnes mais suculentas de Brooklyn, negócio que correu diretamente das veias de sangue irlandês do seu progenitor para as suas.
Mas mais importante que isso, sobra-lhe a verdadeira herança que o pobre bêbado lhe deixara. As suas mãos. Tão grotescas e monstruosas como as do pai. Mesmo se não soubéssemos melhor, nunca diríamos que à anatomia humana tinha sido entregue aquela quantidade de calos e espessura de pele.
Poderia ter sido ganha com os anos de experiência, sim. Mas Henry Highsmith lembra-se delas desde que tinha idade suficiente para beber o seu primeiro copo de whisky. Aliás, a única coisa que os anos de experiência deram a Henry foi o sangue entranhado na sua pele. A única recordação de animal morto após animal morto.
Seguro será dizer, que nenhuma senhora que se preze rodeia Henry com a sua companhia - a não ser que precise de um cão de guarda. E por mais infeliz que seja a situação, Henry aceita. Seja a custo de um punhado de notas amarrotadas ou um quilo de carne fresca. Tudo é negócio quando o corpo é que paga.
E o corpo de Henry Highsmith já pagara o seu preço, se contássemos toda a nicotina que nele entrou. Mas por alguma razão, de alguma maneira - o relógio continua, não tivesse Henry Highsmith sangue nas suas mãos.
As gotas de água pingam pela sua gabardine - o único som que faz companhia às passas secas que Henry dá no seu cigarro enquanto espera pelo último comboio da noite.
A sua melhor esperança para companhia são os seus próprios passos que correm ao longo da plataforma enquanto tenta relembrar a quem e o que é que vendeu mais hoje. Mas pouco importa – amanhã tudo voltará ao inicio.
Não que Henry esteja muito preocupado. Agora ou em qualquer outra noite. Ele sabe o dom que tem e a última coisa na sua vida é problemas em utilizá-lo. Geralmente, a carne que corta é de animal. Mas como tudo, existem exceções.
Um passo a mais e Henry pára. Um cheiro familiar e ao mesmo tempo desconhecido. Sangue. Daquele a que não está habituado. Muito.
Com as suas fagulhas, o comboio cumprimenta a noite e pouco demora até que o verde-escuro das carruagens faça o mesmo. À distância, tão vazio como qualquer outro ponto da estação.
As portas abrem-se e Henry não está sozinho. Na plataforma, do lado esquerdo, um homem de bom porte afoga as suas mágoas numa enorme poça de sangue. No seu lado direito, uma mala com uma forma tão cheia quanto o homem.
Henry Highsmith pega na mala e espreita dentro dela. Rasga um sorriso de orelha a orelha. Entra na carruagem.
As portas fecham-se.
O comboio parte.
A chuva cai.
II
Lá fora, uma tempestade. A cair no metal barato do comboio.
Cá dentro, algo muito pior. Henry Highsmith agarrado à mala que acabara de encontrar como se não houvesse amanhã. Não que esteja acompanhado por muito mais que os jornais do dia anterior, mas Harry tem a informação necessária para não largar um dedo do cabedal preto.
A não ser que seja para fumar, claro.
Henry tira o cigarro mais rápido de sempre do bolso da sua bata. Acende-o. O fumo inunda a carruagem.
Um som familiar entra de rompão – o comboio entra num túnel como uma bala a ser disparada à queima-roupa. Mas não, não é isso. Um leve tilintar que se torna mais forte a cada batida.
Claro, como não poderia faltar. O som de cobre a bater no latão. Henry mal olha para trás para perceber que tem um cego a tentar ver caridade à sua frente.
O único problema? São duas da manhã e Henry Highsmith nunca sentiu tão pouca vontade de partilhar.
“De toda a merda que há na Terra, eles são os piores.” - diz uma voz, mesmo à frente de Henry.
Um sobressalto. Henry olha para a frente. Os seus olhos arregalam-se. Está a ver nada mais, nada menos que um cego. O cego! Com mais buracos nas roupas que moedas no latão.
Olha novamente para trás e para a frente, afastando o fumo do cigarro que está agora transformado numa gigantesca cortina de fumo.
“Como é que—” - tenta adivinhar Henry com o cigarro e uma voz grossa entre os lábios.
“Velhos truques. Não sei ver, mas sei andar.” – estica o copo para a frente – “Moeda?”
Estupefacto, Henry olha novamente para baixo. Pensa na hipótese.
“Desculpa, esqueci-me que só tens notas.” – diz o Cego enquanto Henry começa a afiar os punhos.
“Como é que sabes o que eu tenho ou deixo de ter?”
“Novos truques. Não sei ver, mas sei contar.” – responde o Cego com um sorriso na cara. – “E tu, sabes quanto tens aí?”. O cego bate com a sua cana na mala.
“O suficiente.”
“Suficiente para?”
“Suficiente para não te dar nada.” – ladra Henry enquanto fuma os últimos momentos daquele cigarro. Todo o fumo vai parar à cara do Cego que tosse prontamente.
“Que raio de Diabo és tu que não consegues aguentar um bocado de fumo?” – pergunta Henry com algum suor enquanto o cego só se ri.
“Diabo? Quem disse que eu era um Diabo?”
O chilrear dos carris intensifica-se.
A cana passa nas mãos de Henry que só com um pequeno toque a parte em dois.
“Mas que grandes mãos que nós temos!” diz o Cego, genuinamente impressionado com tamanha força.
“Deixa-me em paz. Agora!”
“Calma, carniceiro.”
Henry olha-o com alguma surpresa.
“Até para um cidadão de fora como eu, és famoso. Tem calma.” – diz o Cego – “Uma pergunta.”
O Cego ajeita os óculos. “Queres acreditar em mim?”
Henry Highsmith realça os seus punhos novamente. “Só depois de tu acreditares em mim.”
“Calma. Calma, carniceiro” – avisa novamente o Cego – “Fazemos o seguinte. Eu deixo-te ficar com o dinheiro.”
“Não que tenhas outra escolha.” – interrompe Henry.
“Não queres saber qual é a condição?”
Henry não está para ouvir nem mais uma palavra e lança um murro à cara do Cego. Antes de acertar no que quer que seja, as luzes do comboio vão abaixo. Henry falha o seu alvo.
“Só tens que sair deste comboio.” – diz o Cego que neste momento é o único que consegue ver.
As luzes voltam ao seu estado normal. Demasiadas para iluminarem apenas duas pessoas.
Isto se o Cego ainda lá estivesse.
III
O comboio viaja a uma velocidade vertiginosa. Não muito mais devagar, as mãos de Henry Highsmith destroem tudo o que veem à frente. Seja madeira, metal ou vidro – Henry corta tudo da mesma maneira como se estivesse à frente do seu habitual balcão. A única diferença sendo o sangue que nelas se encontra entranhado é agora o seu, escorrendo gradualmente entre vidro e lascas até manchar o cabedal preto da mala que é a última coisa que delas escorre, ficando presa com toda a dedicação à mão esquerda de Henry.
Henry pára por um segundo. A sua respiração, ofegante. E é neste momento que Henry se concentra. Onde pela primeira vez pára para pensar não só com a sua força bruta. Acusaram e elogiaram Henry Highsmith de muitas coisas, mas de ser inteligente nunca foi uma.
Mas agora, talvez tudo mudasse. Porque à sua frente, encontra-se o travão de emergência. Henry Highsmith levanta-se na sua direção, confiante. Estica o braço. E, com a mão direita...
…arranca violentamente o travão sem parar um milímetro do comboio.
Henry atira o travão com a toda a força para a extremidade oposta da carruagem, que não só vai mais rápido que o comboio como atravessa o vidro, apenas parando na carruagem seguinte. A carruagem do condutor.
O sangue já não é tanto e a força já não é a mesma, mas é o suficiente para fazer saltar qualquer material que prenda a porta. O vento é como uma besta indomável, entrando de rompante como se fosse tudo menos passageiro. E Henry, de rompante entra, na carruagem seguinte, ainda de mala em mão e sem gastar um segundo corre até à porta do condutor que ao primeiro contacto se estilha em mil pedaços.
A este ponto, a surpresa seria alguém estar mesmo a controlar o comboio. Em vez disso, um mar de alavancas que afogam a pequena mente de Henry Highsmith – pronto a continuar o seu trilho de destruição.
Em vez disso, um click suave. E outro. E outro.
Pouco a pouco, Henry desliga cuidadosamente todos as manivelas. O comboio perde velocidade, suspiro a suspiro até que respira em pleno na escuridão do túnel infinito.
IV
A dimensão do seu corpo é de tal forma pronunciada que nem os gigantes faróis do comboio conseguem fazer de Henry Highsmith mais do que um vulto nos túneis de Nova Iorque – que cansado e a deixar um rasto de vermelho no preto, transporta uma mala cheia de verde. Por agora, o único ponto brilhante no meio de uma imensidão escura que conseguiria engolir qualquer um, mesmo esse alguém sendo o melhor carniceiro de Brooklyn.
Não demora muito até que surja uma luz ao fundo do túnel e como cão atrás de osso, este carniceiro saliva até mais não. E, se a tempestade lá fora já parou, o contrário se pode dizer de Henry que acelera o passo a cada traço de carril.
Finalmente, uma estação. Não muito diferente de todas outras, mas para Henry Highsmith a sua definição atual de paraíso. E Coney Island não é casa – mas tudo é melhor depois de onde Henry esteve. Consigo, a sua dama de escolha. Vestida de cabedal preto.
Henry mete as mãos ensanguentadas na plataforma e sobe-se a si mesmo para um patamar mais alto. Sem pedra ou gravilha.
Do vazio, um alto estrondo ecoa pela estação. Henry olha para baixo e pela primeira vez, deixa cair a sua beldade que despe o seu verde por todo o lado. Logo a seguir, reencontra-se com ela no chão frio. O sangue quente que jorra é o seu único cobertor ao mesmo tempo que cobre os verdes de vermelho.
“Eu disse-te que esse dinheiro não era para ti.” – diz uma voz familiar quase mais alto que o cobre a bater no latão que carrega – “O que é que tu julgavas que irias fazer com esse dinheiro nas tuas mãos? Essas mãos!”
A única resposta de Henry Highsmith vem na forma de fôlegos cada vez mais esporádicos.
“Mas sabes que mais? O dinheiro não é para ti, nem para mim. Nem para o tipo que encontraste nessa mesma posição.” – diz o Cego de revólver em punho enquanto revista o carniceiro, ficando com o seu maço de tabaco e fósforos – “Mas obrigado, carniceiro. Por seres o meu maior prémio.”
O Cego acende um cigarro e recua de volta para o túnel, misturando-se instantaneamente com a perfeita escuridão.
Agora sim, o corpo de Henry Highsmith pagara o seu preço, não tivesse Henry Highsmith sangue nas suas mãos.
O sol desapareceu e as nuvens cinzentas e pesadas denunciam a tempestade. Tudo parece negro e destinado à desgraça neste dia prestes a terminar. As mãos suam, a respiração é nervosa e a chuva começa a cair ruidosamente. Num suspiro a cara desvia-se da janela. Os olhos passeiam-se pela sala escura, cheia de folhas rasgadas e amassadas. Pratos e chávenas com restos de comida putrefactos empilham-se sobre a mesa. Apenas um foco de luz clareia o ambiente, iluminando o piano e uma partitura em branco. As claves embelezam as várias linhas da pauta, mas nem uma nota, nem um ritmo! Porquê? Os dedos suados e nervosos tentam tocar algo, alguma nota, qualquer coisa. É preciso que uma tecla do piano soe! Não há música a pairar na sua mente, nem sequer ouve dentro de si a primeira nota! O que se passa? A respiração continua ansiosa, cada vez mais desregulada e as unhas começam a arranhar as teclas ruidosamente. A música, essa, continua silenciosa!
O compositor levanta-se do banco do piano e pensa que talvez à janela, ouvindo a chuva turbulenta e o vento desenfreado, alguma melodia lhe ocorra. Dirige-se à janela e abre-a. A água da chuva começa a entrar dentro de casa. Não importa! Ele quer mesmo ouvir a força das gotas gordas que batem no chão e o som do vento desvairado. Talvez assim a música destes entre pelos seus ouvidos. Ouve! Ouve! Nada!
Porque é que naquele dia, o último para a entrega da sua encomenda mais importante, não consegue compor o segmento final da sua mais criativa e estrondosa peça? Como terminar a sua obra sem matar todas as belas melodias e ritmos crepitantes que cobrem todos os andamentos já compostos? Como criar no corpo de quem escutar aquele final a sensação eterna e penetrante que o vai fazer arrepiar? Como eternizar estes sons? São apenas mais alguns compassos, mais algumas notas e acabou! Porque é assim tão difícil?
O compositor sai da janela e dirige-se à louça empilhada sobre a mesa. Agora está como que congelado e sem qualquer emoção, recolocando a louça, uma a uma, numa nova torre. Lentamente pega em cada uma das chávenas, em cada prato e reconstrói o caos. Vai retirando meticulosamente cada bocado de comida putrefacto, levando-o à boca. Tudo isto sem expressão, sem esperança. É preciso terminar a obra!
Volta à janela. Tudo está molhado, mas nada disto é importante. Os pés descalços pisam a carpete ensopada sem qualquer reacção. A cara inclina-se para a frente para sentir a chuva e o vento! Um raio ilumina-a e o estrondo do trovão ouve-se de forma ensurdecedora. Tudo reage, menos o compositor! Foi tão perto que a casa e a rua abanam como num tremor de terra e ouve-se o estrondo do raio. A louça cai com estrépito no chão. Os cacos espalham-se pela sala. Mais uma vez o compositor não reage. A sala está cheia de bocados de comida e estilhaços, mas nada disto importa! Volta para o piano. Caminhando sem esperança e muito devagar, os seus pés nus pisam os cacos e os restos de comida. Não, não importa! Onde está a música, onde está a melodia? Porque não a ouve dentro de si?
Senta-se ao piano. As mãos deslizam pelo teclado sem que consiga tocar qualquer som. Ouve-se outro trovão, agora mais ao longe. A sua face molhada da chuva parece chorar toda a frustração que o seu corpo frio e indiferente não consegue. Uma das gotas rola da sua bochecha para uma das teclas do piano, ele olha-a completamente inerte. Cai outra e outra e mais outra! Os seus dedos arrastam-se pelas teclas e enxugam cada gota, ouve-se cada tecla, cada nota, mas num som tímido e triste! Silêncio! Mas será possível? Estas notas sem força e deprimentes entram pelos seus ouvidos e o compositor começa a acordar da sua apatia. Talvez estas notas façam sentido! Concentra-se na chuva, na melodia que tocou e imitando a força da tempestade vai repetindo aquelas notas. Será? Poderá ser este o tumultuoso caminho para o final da sua obra?
Levanta-se. Começa a andar pela sala e a cantarolar a melodia, agora freneticamente. Os seus pés descalços voltam a pisar os cacos, a comida podre, as poças de água, mas nada disto é importante! A voz continua a entoar a melodia. Repete uma e outra vez! Pára! O seu corpo estático ouve internamente a melodia que continua dentro de si. A música desenvolve-se no momento em que fecha os seus olhos e revira a cabeça ao som do ritmo. A música paira pelo seu corpo, mas agora interna e silenciosa.
Volta para o piano e com um lápis começa a escrever na partitura. A velocidade é estonteante. Todo o corpo é música e é transcrita para aquelas pautas de uma forma nervosa e desesperada. Terminou! Olha para a partitura acabada e vê uma pequena bola negra no cimo da folha. Com o lápis fá-la saltar e cair da folha. Não percebeu bem o que era, mas que interessa, finalmente terminou! Mas será que realmente todas aquelas notas fazem sentido?
Pousa os dedos nas teclas do piano e começa a tocar todos aqueles gatafunhos. A melodia ecoa pela sala! O compositor fecha os olhos, continua a tocar e a música flui
como se todas aquelas notas se tivessem apoderado do seu corpo. Aquele som atingiu a perfeição, será possível? A sua voz começa a cantar a melodia acompanhando o piano. Tudo isto é um momento de epifania, de magia! Como foi ele capaz de algo tão perfeito? Afinal a perfeição existe? Sente algo na perna e coça sem nunca parar de cantar e tocar com a outra mão. Não consegue parar! É o final da sua obra, é a perfeição que pensava nunca ser capaz de alcançar. Abre os olhos e repara em novas pequenas bolas negras. Ele está tão hipnotizado pela música incessante que não se apercebe de nada à sua volta. Tudo é insignificante comparado com a grandiosidade daquele momento! A inspiração voltou e conseguiu acabar a sua grande obra! Nada mais interessa! Não consegue parar de tocar, não consegue parar de cantar!
Canta mais uma vez a nota final, mas agora mais longa e forte como um grito! Os escaravelhos entram pela boca, pelo nariz, pelos olhos, pelas orelhas. Mas o corpo, como que assombrado, volta a tocar e cantar a melodia hipnotizadora! Os dedos, pejados de escaravelhos, continuam a mexer e a tocar nas teclas, enquanto os bichos irrequietos se amontoam aos milhares comendo tudo por onde passam. Estes arrastam-se pelo piano, pelo compositor, pela pauta, por toda a sala. A partitura, testemunha da obra máxima e perfeita, começa a ser destruída pelos pérfidos animais. Não é importante! Está tudo na cabeça do compositor e ele continua a tocar. A sua voz continua a cantar aqueles sons inebriantes! Os escaravelhos continuam a aparecer, a amontoar-se e a destruir. E o compositor completamente hipnotizado e extasiado, não percebe que o seu corpo está a ser dilacerado. A partitura já desapareceu! O piano e a voz páram! Silêncio!
A chuva, o vento e os trovões deixam-se de ouvir. O corpo do compositor está imóvel. Até as patas dos escaravelhos que se amontoam deixaram de se movimentar. Tudo está estático! O silêncio é o único som e é ensurdecedor! O corpo do compositor cai estrondosamente no chão! Porque é que é tão difícil compor um final?
Chego a casa ao final de um dia de trabalho, foi mais um dia em que os meus pensamentos se focaram na minha crise existencial que vem desde o útero da minha mãe, porque é que tem de ser assim, porque é que isto me aconteceu?
Cumprimento os meus pais e a minha irmã que como todos os dias a esta hora já estão á minha espera para jantar, oiço as suas lamúrias de sempre relacionadas com a falta de dinheiro para as despesas da casa e os estudos da minha irmã e o quanto lamentam ter de ser eu o pilar financeiro da família.
Janto e vou para o meu quarto, olho-me no espelho que está junto á minha cama, sinto nojo, repulsa ao ver a minha imagem, porquê? Porque não tive direito a escolher? Sento-me na cama e retiro cuidadosamente a caixa de cartão que está por baixo, abro-a, acaricio suavemente o que está no seu interior, gosto de sentir a sua textura, senti-la na minha pele, fecho-a e volto a guardá-la cuidadosamente debaixo da cama, lá no fundo para ninguém ver.
São seis da manhã, toca o despertador. Começo a acordar, esta manhã sinto-me estranho, parece que o meu corpo não quer reagir, não consigo mexer as pernas, os meus braços parecem colados á cama, é como se alguma coisa me estivesse a prender.
Sete da manhã, oiço a minha mãe a chamar-me e não consigo dizer uma palavra tenho algo a tapar-me a boca, não sei o que se passa. Consigo ver que o meu corpo está a ficar coberto por uma coisa parecida com um casulo, tento gritar por socorro, não consigo… isto aperta-me muito, estou a ficar asfixiado. Neste momento o casulo tapa-me a cabeça. Oiço novamente a minha mãe a chamar-me e a bater na porta que está trancada.
Sinto um suave e adocicado sabor na boca…será este o sabor da morte?
Percebo que o meu pai está a tentar abrir a porta e a chamar-me aos gritos.
Depois de muitos ponta pés a porta abre-se. Eles entram e fica um silêncio agonizante no quarto. O meu pai tenta arrancar as várias camadas de casulo que me cobrem sem êxito.
Sinto algo a tocar na minha pele com a mesma textura do segredo da caixa e isso conforta-me e acalma o meu sufoco. O meu pai sai apressadamente do quarto enquanto a minha mãe tenta em vão desprender-me. Ele volta novamente e oiço a minha mãe a pedir-lhe cuidado. O meu pai está a utilizar uma faca para me tirar daqui.
De repente algo acontece, fico com uma dor dilacerante no ventre, como se estivessem a espetar mil agulhas, quero gritar e não consigo, está a doer muito.
Eles conseguem libertar-me depois de várias tentativas. As minhas dores são muitas, quando consigo abrir os olhos vejo-me projetado no teto a chorar… estou em pãnico…a minha mãe pergunta-me quem sou eu, como quem sou eu? O meu pai está ajoelhado no chão com as , mãos a tapar a cara e com a faca com que me libertou, ensanguentada.
O meu segredo foi revelado, com muito esforço sento-me na cama e reparo que estou com o meu vestido branco, tenho o sangue a escorrer-me pelas pernas, a custo tento levantar-me observado pelo ar de choque da minha mãe. Olho-me no espelho e vejo refletido uma rapariga… fraquejo e caio no chão. Agora posso morrer feliz.
Sou um desses gajos agora. Estas são as minhas roupas, um conjunto de t-shirts e camisas inofensivas de cores sólidas quase pretas conjugadas com a primeira imagem que vem à cabeças do cidadão comum quando ouve “calças” e uns sapatos (esta é a melhor forma dos descrever), ás vezes também uso um casaco qualquer. Este é o meu sítio, um amplo cubo escuro com luz baixa de tons vermelho e violeta enaltecendo a aparência dos seus habitantes escondendo-a.
Esta “Sagres” custou 4 euros, felizmente não aprecio cerveja e vou demorar tempo suficiente a engoli-la para não sentir que o meu gasto foi vão, de qualquer forma não vim aqui para beber.
Imaginei os homens daqui mais feios e velhos, sinto alguma ansiedade ao constatar o meu erro, por outro lado fico feliz por me aperceber que ainda tenho uma ideia de mim forte o suficiente para ser ferida e não completamente desprovido de orgulho, mesmo que este me seja completamente inútil.
Uma criatura bizarra de cabelo e lábios rosa choque parece vir na minha direcção. Conforme se aproxima sou ofuscado pelo glitter que lhe adorna o generoso decote sintético e pelas lantejoulas do seu vestido prateado, ela tem o brilho barato dos carrinhos de choque. Pára ao chegar à minha frente, apoia de forma gentil a mão no meu ombro e aproxima a boca do meu ouvido para me dizer numa voz demasiado alta “oi, não me quer pagar um drink?”
Não tenho a menor intenção de foder esta desgraçada nem de lhe pagar o que quer que seja mas o meu tímido “hmm, não sei” não lhe convenceu. Ela aproximasse ainda mais e esfrega a palma na minha barriga enquanto balbucia umas súplicas ensaiadas às quais não me dou ao trabalho de ouvir. Não consigo deixar de me incomodar com a pesada camada de maquilhagem que lhe cobre o rosto ou com as unhas de três centímetros pintadas às riscas rosa e azul. Ela tem um hálito doce de pastilha de morango, odeio coisas com sabor a morango, provavelmente porque adoro morangos. O seu tom de voz pseudo-sexual e infantil dá-me a impressão de estar prestes a ser enganado, tenho de fazer qualquer coisa para a despachar.
- Se eu te pagar uma bebida, paras de ser chata?
- Páro… de ser chata… não te vais arrepender.
- Que queres então?
- Um Cosmopolitan, por favor.
Catorze euros, puta! E nem foi embora, está agora a puxar e a empurrar a palhinha com os lábios enquanto me olha de soslaio com a subtileza dum rinoceronte blindado. Não sei porque ainda penso que alguém se vai embora quando lhe satisfazes os pedidos, ela nem é a minha namorada.
Contraio todos os músculos do meu corpo e fico imóvel a fixar o sinal da saída de emergência. Faço um esforço por ignorar as mãos dela, é particularmente difícil fazê-lo quando a parte de trás do meu pescoço está a ser arranhada pelas suas garras. Depois duns minutos de indiferença forçada ela afasta-se com um olhar ofendido e um violento “paneleirão!”
Deambulo pela sala não sei porquê à procura de não sei como. A aura de frustração sexual não é tão deprimente como pensava, observo o mesmo sentimento de glória fútil obtido quando se acaba um videojogo na dificuldade “principiante”. Os homens têm o peito insuflado e os seus braços açambarcam como ganchos as mulheres aparentemente divertidas.
Procuro as fêmeas não acompanhadas, todas elas são recortes de catálogos de fantasias. Miúdas pequenas com olhos claros e estilo colegial, amazonas negras mostram coxas robustas adornadas com saias curtas e coloridas, senhoras magras com mamas desproporcionais em vestidos cocktail, gajas morenas em ganga preta esticada e casacos de cabedal, índias delicadas em padrões florais, damas de olhar severo embrulhadas em vinil… Não pode ser… não é ela… aqui? Mexe-te! Dá meia volta e sai daqui meu cabrão! Não deixes que ela te veja! É isto que tu realmente queres?
- Nuno? És tu! Aqui?!
A sua gargalha fresca é a voz da minha humilhação. Agora é tarde, vou permitir a corrida até mim para ela me envolver em culpa com os seus braços.
- Anda, vem sentar-te comigo.
Ela pede duas cervejas e paga-as dizendo ao empregado “este é meu amigo”. Sentamo-nos na mesa mais imperceptível do bordel, eu faço um resumo da minha vida tão interessante como a própria mas ela parece ouvir-me, ela sempre o fez.
Pergunto-lhe como veio parar aqui. Ela conta-me uma história comum: no segundo ano da faculdade precisou de dinheiro para as propinas, consegui-o com duas horas de trabalho que nem lhe custaram muito. Começou a prostituir-se ocasionalmente, primeiro quando precisava desesperadamente de dinheiro, depois para comprar coisas que queria muito – viagens, máquinas fotográficas e de filmar, por fim aceitou a situação como o seu trabalho. Não era nenhum mar de rosas mas também não era tão custoso como imaginara, tendo em conta o pagamento e o horário laboral era preferível à maioria dos empregos, podia até beber durante o expediente.
Enquanto falava procurei qualquer sinal de tristeza, remorso ou desespero. Nada. Não havia hesitação na voz ou artificio nas palavras. Estava alegre por me ver e de modo algum embaraçada pelas circunstâncias. Dizia “levei no cú” com a mesma naturalidade que falava dos seus projectos escolares no secundário onde, tal como agora, eu também passava os meus dias a tentar descodificar sinais duma realidade fantasiada nas nossas conversas.
Faço um esforço para esconder o meu desconforto através de acenos de cabeça e sorrisos, conseguia até por vezes exclamar chavões como “uau” ou “não posso acreditar” ou “ tu és doida”. Ainda assim não creio ter sido convincente quando o meu corpo traía a minha compostura através do franzir duma sobrancelha, duma contracção dos ombros ou lábios, do tremer duma perna ela mudava subtilmente o tema da conversa para episódios nostálgicos do nosso passado.
- Então e tu Nuno, o que te traz aqui?
Como responder-lhe? Digo-lhe que para ultrapassar a minha obsessão não correspondida por ela encarei a minha vida amorosa com um niilismo atípico pedindo distância emocional em troca de afecto plástico às infelizes solitárias que tinham a indulgência de me desejar? Que todas as relações carinhosas que estabeleci com mulheres terminaram num suspiro mútuo de cansaço ou desinteresse? Que nos dias mais felizes dum longo namoro motivado por insegurança comparava esse pressuposto amor à nossa pressuposta amizade e sentia-me condenado ao fracasso? Que pensava nas nossas conversas quando me aborrecia de aconchegar desconhecidas? E que agora após ter conquistado um ordenado de quatro dígitos decidira investir mensalmente um terço do mesmo em encarar as minhas necessidades sexuais da mesma forma que encaro as minhas necessidades de nutrição? Era isto que desejava responder, desde há muito tempo, desde antes de tudo isto acontecer. E devia fazê-lo, afinal de contas ela era uma especialista em satisfazer.
- Vim só ver.
Os espasmos agudos da minha voz denunciavam-me de novo, uma vez um cobarde, cobarde para sempre.
- E estás a gostar? Haverá alguma sortuda?
-Hmm, não sei…
Disfarço muito mal o meu pânico ao vasculhar a sala com os olhos à procura duma rapariga de idade próxima à minha com uma beleza pouco convencional mas discreta e porte digno para tentar parecer o putanheiro menos patético possível.
- Aquela ali é interessante.
Aponto para uma mulher esbelta um pouco alta usando expressão distante, vestido e sapatos brancos contextualmente conservadores, corpo firme e subtil e uma certa qualidade estatuária ainda não esmagada pela exposição constante a brejeirice e Rod Stewart. Ainda por cima era preta, isso devia conceder-me alguns pontos.
- A Brenda? Ela é bonita, sim senhor tens bom gosto. Mas não a aconselho, não gosta de fazer broches, chega mesmo a arranhar a cabeça do caralho aos clientes com os dentes para eles a interromperem. Não Nuno, tu precisas de mais dedicação.
Ela estica o pescoço e move a cabeça lentamente até encontrar a candidata perfeita.
- A Rute é melhor, ela vai tratar-te bem, já a vi enterrar uma bola de ténis na boca, juro.
Era a gaja com as maiores mamas de silicone do sítio, claro que era a gaja com as maiores mamas de silicone do sítio.
- Não sou grande fã de silicone.
- A sério? É uma pena. Bem… Eu também posso ser alugada.
- Tu?! Não, jamais, eu nunca conseguiria.
- Porque não? É o meu trabalho. Se não fores tu será outro qualquer. Como aquele.
Ela aponta para um tipo gordo e oleoso com uma t-shirt onde se lê uma reinterpretação da sigla F(emale).B(ody).I(nspector), uns calções largos camuflados três dedos abaixo do joelho e uma barba densa que apenas lhe cobre o queixo, nada disto podia ser uma coincidência. Imagino-a de joelhos perante ele, a nuca agarrada por aquela pata curta e inchada, a testa apoiada numa pança amorfa e pálida que esconde uma pentelheira farta e viscosa donde se soltam alguns pêlos suados que entram naquela boca perfeitamente desenhada por entre o lábio superior e um caralho tão desapontante como previsível deitado naquela língua rosa cuja ponta atrevida entretém um escroto pequeno e dependurado. Não é a primeira vez que este gajo vem aqui, deve ser um frustrado experiente desabituado ao escrúpulo. Aposto que irá soltar umas gargalhadas arrogantes semelhantes a grunhidos, aposto que vai escarrar na cara dela, gritar “chupa puta!” e peidar-se a seguir e quando ela franzir o nariz para evitar o cheiro uma gosma verde vai deslizar cara abaixo e entrar-lhe na boca, ela vai recuar enojada e o estupor vai dar-lhe uma chapada e dizer “cheira que é picanha”. Depois vai pô-la de quatro e enviar-lhe a pila no cú, os colhões serão a única coisa a tocar na vagina da minha amiga, tal é a preocupação deste campónio para o prazer dela. Aposto que vai ficar desapontado quando retirar a sua minúscula pila e ver que não está cagada, pois ele sabe que pagou para se vir na boca dela.
O meu estômago reage, sinto uma vaga de vómito trepar-me o esófago, um gosto acre preenche a minha boca como fumo, começo a sentir um liquido espesso na parte de trás da minha língua. Inspiro profundamente pelo nariz enquanto dou um grande trago de cerveja. Está morna e sem gás, é como se todo o chão dum festival de verão escorregasse pela minha garganta
- Sabes Nuno, eu sempre gostei muito de ti, foste em tempos o meu melhor amigo, era capaz de te dizer e ouvir as coisas mais horríveis com os pormenores mais ridículos, ninguém me fazia rir como tu e ao mesmo tempo foste a única pessoa que me viu chorar durante uns bons anos. Eu sempre soube dos teus sentimentos por mim e nada me fazia sentir mais culpada que não os retribuir, nos meus momentos mais tristes não conseguia deixar de imaginar como a minha vida seria fácil e feliz se correspondesse pelo menos a metade dos teus sentimentos. Às vezes durante as nossas longas conversas distraía-me a olhar para ti e a pensar “porque é que não quero namorar com o Nuno? Ele até é giro. Os seus olhos são meigos e o seu sorriso sincero, os seus lábios são grossos e devem ser confortáveis de beijar, ele tem um bom cabelo, está em relativa boa forma, deve ter pelo menos força suficiente para me controlar fisicamente, tudo bem ele veste-se mal e é hesitante quando me toca mesmo que se trate do cumprimento mais formal, mas isso são coisas que eu consigo resolver. Não sei se há remédio para aquelas pernas finas, mas que importa? Ficarei por cima dele, eu gosto disso, e ele deve gostar de ficar por baixo, pelo menos por baixo de mim.” Mas independentemente das minhas racionalizações não conseguia deixar de me sentir incestuosa ao pensar em ter sexo contigo e a menos que algum de nós precisasse mesmo dum abraço qualquer proximidade física era repleta de tensão e constrangimento. Perdoa-me Nuno, eu era nova e impaciente. Assim que virei puta, nas horas em que a casa estava a meio gás, olhava longamente para a porta e imaginava o meu Nuninho a entrar sorridente como um homem feito. Imaginei-te a percorrer a sala relaxadamente dizendo “olá” às meninas com a confiança de quem já deu alguns orgasmos, imaginei uma das tuas gargalhadas saudáveis ao olhares para mim, vinhas falar comigo com entusiasmo, livre das tuas inibições e moralismos românticos, mostravas-te resolvido e despreocupado. Oh, como desejei tal noite, quando me apoiasse no teu braço porque não conseguia parar de rir não ias contrair o bíceps e apertar as pernas, ias abrir o corpo e apresentar-me o peito, eu ia cheirar o mesmo desodorizante de supermercado aroma “tentação” e sorriria muito porque achava super fofo o teu cepticismo no que toca a perfumes caros, tu ias afagar-me a nuca e entrelaçar os meus cabelos nos teus dedos dizendo bem-disposto “tive saudades tuas, pá”. Passada a tua obsessão, eu ia poder recompensar o teu carinho com a mesma moeda, levava-te para o quarto mais lamechas do Mar de Rosas, tu ias rir-te dos corações felpudos expostos na parede e das pétalas na cama, eu empurrava-te bem devagarinho para cima do colchão, tu aterravas refastelado no colchão e eu cobriria o teu corpo com todos os beijos que desejas-te durante tanto tempo. Mas agora eles não seriam sôfregos, dramáticos ou desesperados, seriam leves como flocos de neve numa tarde de Verão particularmente quente. Ia esfregar o teu caralho duro nas minhas mamas e ver um sorriso suave e satisfeito na tua cara, ia trepar para cima de ti e sentir uma conexão que sempre pareceu tão certa. O teu caralho iria espremer-se dentro de mim dizendo “obrigado” e a minha cona iria apertar-se dizendo “não precisas de agradecer”. Deitar-me-ia em cima de ti e fumávamos um cigarro rindo dos nossos eus passados sonhadores e nervosos. O chefe bateria à porta perguntando se estávamos despachados, eu diria para ele se ir embora porque pagas-te uma segunda hora, eu estaria a mentir. Rias-te como um perdido, viravas-me de barriga para cima beijavas o meu corpo com curiosidade a tua língua investigava o meu corpo, procurando todos os pontos que o fazem estremecer mas sem se apressar exigindo o meu prazer em troca da tua dedicação. Tomavas posse do meu corpo, puxavas-me pela parte de trás dos joelhos afastando-os e provocavas o meu clítoris com um caralho semi-recuperado, eu gemia e tentava apertar as minhas pernas à tua volta, mas apenas conseguia mexer uma delas, pois a outra estava imobilizada pela tua mão, penetravas-me finalmente, encostavas os meus joelhos ao teu peito, apertavas-me as mamas com força, comias a minha boca, o teu caralho afundava-se em mim… e afastava… afundava-se… e afastava … afundava-se… e afastava… e repetia mais forte, afundava-se… e afastava… afundava-se… e afastava … afundava-se… e afastava… e repetia mais forte, afundava-se… e afastava… afundava-se… e afastava … afundava-se… e afastava… e repetia mais forte. Estás prestes a explodir, as tuas mãos apertam-me com mais força, o teu caralho engrossa, os teus joelhos batem furiosos na berma do colchão sempre que avanças, afasto-te, viro-me de barriga para baixo, pressiono o meu peito contra a cama e levanto o rabo, os meus braços estão perfeitamente dobrados e não oferecem qualquer resistência. Quero que me fodas como uma cadela, quero que me fodas como algo que compras-te e tens o pleno direito de utilizar a teu bel-prazer, quero fazer-te perceber que sou uma puta. Entras dentro de mim mas tens as pernas cansadas e não consegues manter o mesmo vigor, por isso empurro o meu rabo contra ti e afasto-o ao mesmo ritmo de à pouco, dás-me uma violenta bofetada no cú, as tuas mãos agarram as minhas ancas, uma das minhas escorrega até ao meu clítoris, recuperas as forças para mais umas investidas estóicas, quando te começo a sentir a vir afasto-me, ajoelho-me à tua frente e ponho a tua pila na boca, devagar e profundamente como o mais terno dos beijos para receber a tua gratidão na minha boca.
Se produzir qualquer som choro.
- Que me dizes Nuno, vamos lá?
Se produzir qualquer som choro.
- Vá lá Nuno, eu pensei nisto tantas vezes.
Se produzir qualquer som choro.
- Por favor Nuno, faz a vontade à tua amiga.
- Tudo bem.
É o meu limite de palavras, nem consigo acrescentar o “ganhas-te”.
- Fazes-me muito feliz.
Ela levanta-se e puxa-me pelo pulso. Tropeço mal me levanto do sofá e tenho de me agachar abruptamente para não nos levar a ambos ao chão, ela não pareceu desequilibrar-se muito mas olho para ela para ver se está bem. A minha cabeça está ao nível da sua cintura e ao olhar para cima vem-me à cabeça a imagem duma mãe a guiar o filho pela Disneylândia. Levanto-me com um riso nervoso, ela responde-me com um riso verdadeiro. Está tudo bem, ela quer isto, como poderia não querer? Sou a melhor alternativa possível, ninguém se preocupa com ela como eu. Nenhum destes cabrões vai fazer o mínimo esforço para a satisfazer. Sou um adulto agora, eu já fodi antes, eu sei o que fazer, não há nenhuma razão para esta insegurança, eu sou capaz duma relação leve e relaxada com ela, com ela eu sou capaz de qualquer tipo de relação. Devemos estar quase a chegar ao quarto, este corredor começa a parecer-me demasiado comprido para a dimensão do sítio. Se bem me lembro ela disse que o quarto era ridículo, é melhor preparar um comentário jocoso. Ela vira à direita, tira uma chave do bolso, coloca-a na fechadura, torce-a, puxa-me para dentro do quarto.
- Hahaha, este quarto é mesmo ridículo.
Sou o mestre supremo da máscara social.
Tiro um punhado de notas do meu bolso, ela escolhe algumas delas e devolve-me o resto, depois guarda a sua parte na gavetinha da mesa-de-cabeceira, é mesmo minha amiga, adivinhou certamente que podia ficar com tudo e não o fez. Só agora que consigo olhar bem para ela compreendo qual é o seu nicho. Com aquelas jeans apertadas até ao socialmente aceitável, o top branco curto como uma janela para o umbigo, os brincos coloridos, o totó vermelho no pulso e os ténis all-star azuis ela é sem margem para dúvidas a rapariga do lado, a miúda fixe, o paradigma da namorada de liceu. Até o coração tatuado no pulso que o primeiro namorado lhe convenceu a fazer traz credibilidade ao papel.
Ela avança para mim, desmaia as mãos nos meus ombros, dá-me um pequeno beijo na parte do meu peito exposta pela camisa, levanta a cabeça muito devagarinho olhando-me com olhos reluzentes de baixo para cima, desliza as mãos meigas pelo meu pescoço até os dedos do meio acariciarem a parte de trás das minhas orelhas, põe-se em bicos de pés, o seu peito roça o meu, os lábios entreabrem-se, os olhos semicerram, ela beija-me. Ela beija-me a mim. É ela que me beija a mim.
Se mover qualquer músculo choro.
- Está tudo bem Nuno? Passa-se alguma coisa?
Respondo-lhe envolvendo a sua cintura com um braço e puxando a sua cara para mim com uma mão. Beijo-a com o fulgor duma revolução, prendo-a como se prende a liberdade, dispo-a com a violência dum desejo à muito reprimido a ser finalmente libertado. Soutien azul e cuecas rendadas rosa, nada disto é por acaso. As minhas mãos tremem quando lhe tento desapertar o soutien, ela fá-lo por mim. As mamas dela são espevitadas, brancas e cabem-me perfeitamente nas mãos, ela disse que me imaginava a apertá-las com força, não preciso de me conter, agarro-as como se fossem a única coisa que me salvam dum precipício enquanto faço movimentos circulares com a língua em volta dos seus mamilos até os sentir bem durinhos, depois mordo-os. Ela interrompe os gemidos com um gritinho mudo. Baixo as minhas para os seus joelhos, faço-a cair na cama, algumas pétalas ressaltam do colchão, as minhas mãos sobem, os meus polegares pressionam as suas coxas, a minha cabeça desce liderada pela minha língua seguida de perto pelos meus lábios. Mãos e boca estão prestes a encontrar-se. Afasto o meu indicador do meu dedo do meio para lhe rodear os lábios da cona enquanto isso a minha língua intromete-se entre as suas cuecas e a sua pele, sinto pêlos, não esperava encontrar uma puta peluda.
Agarro as cuecas pelas laterais, ela levanta as pernas no ar para eu as tirar, contenho-me para não as cheirar, beijo-lhe os pés, os tornozelos, os gémeos, lambo e mordo as coxas, lambo-lhe a zona pélvica bem devagar, percorro o espaço entre a parte exterior dos lábios e as virilhas, atravesso a fina camada de pele que separa a vagina do ânus para repetir o mesmo do outro lado, coloco a minha língua entre os seus lábios, subo e dou a volta mesmo por cima do clítoris que já sinto engrossar e volto a descer, faço o mesmo do outro lado mas desta vez em vez de descer começo a estimular-lhe o clítoris com um misto de movimentos circulares e diagonais. Ela está molhada, não há forma de fingir isso, e só para de gemer para sussurrar encorajamentos como “isso”, “estou a adorar” e “por favor não pares”.
Eu sabia que todos aqueles vídeos da internet mais todas as minhas tentativas e erros não foram tempo desperdiçado. No fundo sempre soube que tudo isso me estava a preparar para este momento. Enfio-lhe os dedos, os gemidos são ainda contínuos mas agora aumentaram o volume, são uma sinfonia duma só nota, é o canto do amor e o amor tem apenas uma voz e não se pode confundir nem misturar com nenhum outro barulho. Ela tinha razão, sou um homem realizado agora, estou completo. Não somos namorada e namorado, somo mais que isso, somos cúmplices, somos verdadeiramente cúmplices. Que importa se eu tiver de lhe pagar? É um investimento tão pequeno quando comparado com todos os outros. Posso não ser propriamente rico mas o que me faltar em dinheiro irá sobrar em força de vontade. Irei a pé para o trabalho, não vou por um pé em restaurantes, apenas comerei as carnes mais baratas do porco, jantarei somente arroz com feijão, não precisarei de bares, cinemas, teatros, viagens ou cigarros. Virei cá todas as noites resgatar-lhe destes masturbadores incapazes. É melhor tirar os dedos e dar descanso à língua, não quero que ela se venha antes de sentir o meu vitorioso pau.
- Nuninho, coração, não te quero apressar mas tenho hora marcada com o Cláudio e ele é exigente e generoso em partes iguais.
- Só um pouco mais minha deusa, não quero terminar a martelo pneumático uma escultura feita a cinzel.
Sou a merda dum génio fodasse, quase me faço vir.
- Oh, tão querido! Mas ele marcou para daqui a dez minutos e não me quero arriscar a perder o meu plano de reforma. Putas têm carreira curta. Mas podemos combinar uma coisa… se conseguires esperar uma hora podes vir cá depois.
- Eu venho, eu pago o que for preciso.
- Esqueces-te que te prometi a segunda hora grátis? E até te digo mais: esta é a minha última marcação, se for preciso podes demorar mais um pouco quando voltares.
- Bem… assim sendo terei de te recompensar doutra forma.
Sim meu anjo, é isso mesmo que estás a pensar, a minha língua não está a passar pelo meu lábio superior para limpar um bigode de leite.
- Uhh, mal posso esperar. Se quiseres ver podes ficar neste armário, ele bebe como se precisasse de desinfectar uma ferida interna com gin, nem com a porta aberta seria capaz de reparar.
- Deixa estar, não sou ciumento.
- É assim mesmo que eu gosto.
- Começo a perceber muito bem os teus gostos.
- Uau Nuno, por onde andas-te durante todo este tempo?
- A percorrer um caminho longo que agora sei não ser circular.
- “Chegou ao seu destino.”
Ela disse isto imitando a voz feminina dum GPS. Ela é tão espectacular, tenho tanta sorte. E a parte melhor é que a mereço.
- Bem Nuninho, ainda temos 8 minutos, se quiseres posso acarinhar o teu caralho na minha boca e fazê-lo bolçar antes da sesta.
- Não te preocupes, uma tusa destas não adormece numa hora. Para além disso não me quero vir antes de ti.
- Que cavalheiro, assim sendo importas-te de sair para que tome um duche? Até te convidava mas da maneira que estás ia precisar doutro logo a seguir.
- Sem problema, vai lá apagar o rasto, não quero intimidar o betinho.
- Como és bondoso.
Sento-me num cadeirão preto mesmo em frente da porta do quarto mais lamechas do Mar de Rosas. Durante dez minutos não penso em absolutamente nada, deve ser isto que monges budistas sentem, mas sem a gratificação de ver a mulher amada ansiosa e satisfeita. Começo a imaginar o meu rival quando reparo no seu atraso, tenho pena do infeliz, pode até ser o melhor fodilhão desta vara de ressentidos, será incapaz de sentir o que sinto ou provocar o que provoquei. Cada um apenas pode colher o que semeou.
Passam dez minutos, será que o tipo se acobardou?
Passam mais dez minutos, onde estará ele? Quem é o otário capaz de deixar um mulherão destes à espera quase meia hora? Pensando bem não o censuro. Se é um alcoólico como ela disse não pode ter o controlo para manter uma performance longa, cada um com seus vícios. Apenas lamento a minha musa, pela forma como as coisas iam este tempo seria suficiente para dois orgasmos no mínimo.
Começo a ouvir passos pesados ao fundo do corredor, olho para o lado e vejo um rapaz novo calçando umas plataformas de 5 centímetros, vem sozinho e não entra em nenhum dos quartos, será este o Cláudio? Não o imaginava assim. É alto apesar das plataformas e magro, veste as calças mais justas do bordel, a esta distância não consigo perceber se ele pintou ou vestiu a sua t-shirt, tem também um casaco rendado de cor pérola com botões a imitar flores e uma espécie de cartola de veludo roxo. Pobre diabo, tanto trabalho a chamar a atenção para se ver forçado a pagar por sexo, sinto uma genuína pena por ele, em tempos eu também não conseguia distinguir um miúdo dum homem.
O pateta olha para mim e acena energicamente com um sorriso estúpido na cara, ao menos é alegre, deve ser do gin.
- Oh amigo, não me diga que já está à espera há muito tempo.
- Uns dez, quinze minutos.
Na realidade era o dobro, mas não queria preocupá-lo, fazer a sua amante pensar noutro durante o acto já era mau o suficiente.
- Chiça, e não lhe deixaram entrar? Toda a gente sabe que gosto de me atrasar, este rímel não se aplica sozinho. Com esta aqui esse tempo é mais que suficiente.
Talvez para ti meu imbecil.
- Eu sou muito vagaroso, mas não se preocupe, isso também faz de mim paciente.
- É talvez a mais útil das virtudes.
Nem fazes ideia meu pavão. Coitado, até parece ser bom rapaz, nem aparenta estar tão bêbedo quanto isso, deve ser da prática. É realmente lamentável, um rapaz tão novo e simpático, tivesse ele a “mais útil das virtudes” e se calhar escusava de ser o intervalo duma obra-prima. Ele vai abrir a porta, vou tentar piscar o olho a Vénus nas suas costas. Eu sou mesmo incorrigível.
- Cláudio, amorzinho!
- Filipa, minha magnífica porca!
“Minha magnífica porca”?! Onde é que ela desencantou este cromo? Tive que levar as mãos à boca e dobrar todo o corpo para não estourar a rir. O idiota conseguiu impedir a minha piscadela, aposto que seria retribuída com um olhar vulcânico que me manteria quente até chegar a minha vez. Mas não me vou rebaixar a ódios mesquinhos, tenho demasiado tempo precioso para me sujeitar a isso.
Daqui consigo perceber que estão a falar e a trocar risinhos. O coitadinho deve estar nervoso, a sorte dele é que a minha miúda não é apenas a explosão sexual que eu bem conheço e também sabe ser meiga, mesmo estando a fingir. Apenas um ouvido bem treinado consegue ouvir a condescendência com que o tratou. “Amorzinho”, amorzinho é o meu cão.
Devem estar a começar. Ouço beijos e uns gemidos moles. Aposto que o rapazola se julga o rei do mundo, se ele estivesse deste lado da porta, e eu do outro, compreenderia as suas limitações e desistia de foder.
Os gemidos começam a ficar um pouco mais enérgicos. Ela devia considerar seriamente uma carreira como actriz, se não soubesse tanto quanto sei pensaria não se tratar duma simulação. Mas isto não é a uniforme canção do amor. Há demasiados contrastes, parece que ela está a reagir de formas diferentes às diferentes coisas que ele faz em vez de manter um único, constante e sonoro grito de êxtase cuja única flutuação é o aumento do volume conforme o aumento da dedicação.
Este tipo mexe-se muito, consigo ouvir a cama a ranger, a continuar assim não vai aguentar muito mais, deve ser por isso que ela ora geme ora grita tão alto, deve estar a ver se o despacha para poder estar comigo mais cedo.
Daqui a nada ele está a acabar, deve estar mesmo quase.
Pronto, estou prestes a entrar em cena, já não ouço tanto barulho. Ela está a desleixar-se no entanto, dizer: “pára, não sei se aguento tanto” é um bocado duro, mesmo que seja dito por entre um suspiro afectuoso e um risinho colegial. Tem calma minha leoa, não deprimas o menino, eu já aí vou dar-te o que precisas.
Ela apercebeu-se do erro e retoma a intensidade, ela sabe o que faz. Mas devia ter mais cuidado, se continua a fingir estas faltas de ar até este infeliz pode descobrir-lhe o jogo.
“Fodasse meu cabrão, fizeste-me vir outra fez”! Mas de quanta aprovação é que este palhaço precisa? A mãe não o abraçou quando era criança? Será por isso que se veste como um espantalho no arraial Pride.
Já passam dez minutos da hora, será que se passa alguma coisa? Será que esta besta está a forçar a minha princesa? Será que devo agir?
Passam vinte minutos da hora. Já teria arrombado a porta e demonstrado a minha virilidade se não me tivesse lembrado que este pedaço de merda chegou vinte minutos atrasado. O meu amor está apenas compensar o tempo desperdiçado por ele, desde pequena que é assim, no secundário costumava fazer os trabalhos de grupo sozinha e dizia sempre que as tarefas tinham sido distribuídas igualitariamente. A prova que é este o caso foi eu ter-lhe ouvido dizer “vá lá fica mais um bocadinho”, ele ainda pareceu cair em si e respondeu “não sejas gulosa, não queres deixar o teu amigo à espera, amanhã há mais”, afinal de contas a química entre nós deve ser perceptível até para este paspalhão acéfalo. Ela ter suplicando falsamente “só mais um pouco, por favor, eu faço o que quiseres” pareceu-me um pouco excesso de zelo, mas ela é mais bondosa que eu, e é por isso que a amo.
Passam trinta minutos da hora, o canalha enfeitado deve estar embaraçado. A minha rainha é talentosa, mas não sei se o é ao ponto de fazer um cão ejacular quando ele sabe estar um lobo à porta.
- Desculpe lá o atraso amigo, já sabe como são estas gajas, não é? A Filipa pediu para o senhor esperar só mais dez minutos para ela se refrescar, quando entrar ela estará como a viu quando chegou. E vá com vontade, ela hoje está insaciável. Não sei se haverá paciência que aguente. Um abraço e divirta-se.
Podes ter a certeza que há paciência que aguente meu verme prepotente! Não fosse este o dia mais feliz da minha vida e desfazia-te as trombas aqui e agora! A única coisa que seria reconhecível nessa carcaça desnutrida seria esse sorriso imbecil para que o mundo soubesse que morreste conforme viveste, como um filho da puta néscio sem noção do seu fracasso como homem, a tua própria mãe sentiria repulsa de ti no teu funeral, se é que já não a sente. Esperar dez minutos para ela se refrescar? Mas eu sou um puto como tu? Os meus dentes de leite já caíram há muito. Não sinto qualquer pudor em entrar agora e acabar o que foste incapaz de continuar. Eu sou um homem vivido, não um mariconço enojado.
Abro a porta com um pontapé e deixo-a esbarrar contra a parede, não há necessidade para delicadezas. Deixo-me ficar quieto por debaixo da porta para ela ver o seu herói em toda a sua glória.
- Hey, quem está aí?
Porque me perguntas “quem está aí?” com essa voz dispersa e olhar vazio, meu amor? Eu estou mesmo à tua frente, não te lembras de mim?
- É o Nuno.
A minha voz trai-me de novo.
-Nuninho, coisa fofa. Deixa-me só ir tomar um duche e já vou ter contigo, tá?
Porque é que te levantas tão devagar com a mão apoiada no colchão? Porque é que essa mão é a única coisa que te impede de cair devido ao tremor das tuas pernas? Porque ondulas em macias contorções que percorrem todo o teu corpo? Porque andas tão devagar? Será que temes que o chão se abra se o pisares normalmente? Que te fez ele? Magoou-te? Vai ficar tudo bem meu amor, eu vou tomar conta de ti.
Avanço para ti destemido e colho-te nos meus braços. És apanhada de surpresa pelo meu ímpeto e afastas-te um pouco. Não te culpo, mas não precisas de ter medo, está tudo bem, sou eu. Vou recompensar-te como prometi. Não há tempo a perder, a cura será mais rápida que a mazela. Um beijo na boca para te sentires segura, um em cada lado do pescoço para fazer o sangue fluir, uma mordidela vigorosa por mamilo para te espicaçar, duas chapadas nas coxas para anunciar o que aí vem uma lambidela contínua e célere pelo teu ventre, abrandada pelo que julgo ser esperma ressequido. Estou-me pouco cagando. E num instantinho aqui estou eu, de frente para o templo de Vénus. Língua, língua, línguas, dedos, dedos, dedos.
- Tem calma Nuno, estás assanhado. Deixa-me lavar, estou toda porca.
- Estás magnífica.
Porque sorris? Porque é que esse sorriso não é dirigido a mim? Porque é que tenho de te empurrar com a mão para que não saias da cama? Porque é que te deixas cair com tanta facilidade? Língua, língua, língua, dedos, dedos, dedos. Porque é que as tuas virilhas estão tão peganhentas e a tua cona tão seca? Que mancha é esta no edredão? Que poça é esta no chão? Para onde foram as pétalas? Língua, língua, líng… porque empurras os meus ombros com os pés? Porque é que me deixo sentar tão facilmente? Porque me sinto tão patético?
- Chato! Larga-me! Já venho! Eu sabia que devia ter-te feito a merda dum broche.
Porque te mexes tão rápido de repente? Porque me deixas sozinho no quarto mais ridículo do puteiro?
Se pensar um pouco choro.
Ela nunca me quis foder.
Se pensar um pouco choro.
Foder é o trabalho dela.
Se pensar um pouco choro
Gajas não emitem sempre o mesmo som monocórdico quando estão a gostar de foder.
Se pensar um pouco choro.
Ninguém emite sempre o mesmo som monocórdico quando está a gostar de foder.
Se pensar um pouco choro.
A minha ex-namorada arqueava mais as costas quando lhe fazia minetes
Se pensar um pouco choro.
Já passaram muito mais de dez minutos.
Se pensar um pouco choro.
Ela sempre teve pena de mim.
- Nuno, estás bem? Passa-se alguma coisa?
Se ela olhar para mim vai ver-me chorar.
- Nuninho, querido, fala comigo.
Se ela olhar para mim vai ver-me chorar.
- Nuno, desculpa pelo que disse há pouco, estava zonza e cansada, o Cláudio é cá uma trabalheira… mas agora já estou melhor. Vem cá, se soubesses como esperei este momento desde que comecei a trabalhar…
Se ela olhar para mim vai ver-me chorar.
- Nuno, eu sou tua amiga, eu gosto de ti, eu não suporto ver-te assim. Olha para mim, deixa-me ajudar-te. É justo, tu prometeste-me isso, lembras-te? É isso que nós fazemos, ajudamo-nos um ao outro, dizemos as coisas mais horríveis com os pormenores mais ridículos.
Há um sabor amargo nesta que é a fungadela mais longa da minha vida.
- Preciso de…
Há um sabor muito mais amargo nesta que é a fungadela mais longa da minha vida.
-… ir à casa de banho.
- Estás bem?
- Sim.
Porque fechei a porta com tanta força?
Preciso de abrir todas as torneiras no máximo da sua potência. Preciso de me assoar. Preciso de me ver ao espelho. Preciso de olhar para mim enquanto choro para saber quando parar. Preciso de gritar. Preciso de puxar o autoclismo para abafar o som. Preciso de gritar no exacto momento em que a descarga abafa o meu grito. Preciso de gritar outra vez. Preciso de esperar que o autoclismo encha. Preciso de sincronizar o meu grito com o autoclismo de novo. Preciso de me ver ao espelho novamente. Preciso de me acalmar. Preciso de desistir da ideia que sou a porra dum guru sexual capaz de enlouquecer qualquer mulher com uns truques fisiológicos que aprendi com pornografia. Preciso de aceitar o facto que ela prefere mil vezes foder com uma série de mil gajos do que comigo. Preciso de dar graças aos Deuses por ter uma amiga complacente disposta a dar-me uma foda de graça apenas porque sempre estive apaixonado por ela. Preciso de dar-lhe a oportunidade de me ajudar assim como ela me deu a oportunidade de lhe ajudar a ela. Preciso de me tornar num homenzinho. Preciso de parar de chorar. Preciso de sair desta casa de banho.
Abro a porta, não vejo ninguém. Não faço a mais pálida ideia de quanto tempo perdi na casa de banho. Provavelmente muito. Ela deve ter ido embora, é melhor assim. Ao que parece aquele abençoado esquisitóide deu-lhe a foda da sua vida, ela estava exausta mas feliz até eu chegar. Sinto-me bem por ela ter um cliente que não pense apenas em si próprio e que se preocupe com o prazer dela. Ainda bem que me cruzei com ele e não com aquele monstro dos calções camuflados. Pensando bem ele nem deve ser assim tão mau, aposto que é apenas um simplório que lhe pede abraços e beijos na boca para se lembrar de quando ele e a mulher eram atraentes e usavam os últimos gritos da moda. Espero que ela consiga manter uma conversa com o Cláudio, ele parece um bom rapaz e a julgar pelas calças deve estar muito mais preparado para lidar com a situação do que eu. Não que a comparação seja relevante, eu não tenho nenhuma situação para lidar. Já lhe vi nua, ela já me beijou, já explorei o seu corpo, já lhe lambi a cona, ela pareceu gostar apesar do artifício. Não é rebuscado assumir que tive um papel causal nos seus múltiplos orgasmos, mesmo que não tenha sido razão suficiente. Havia uma altura em que isto me bastava. Eu vou ficar bem, eu não a via há muito tempo e estava bem, agora eu devo ficar melhor. Daqui a dois dias vou convidá-la para um café, ela não deve trabalhar de tarde, vai ser giro, como era dantes, vou queixar-me do meu trabalho, ela vai ofuscar as minhas histórias com as suas. Acho que para a próxima não me vou contrair todo quando ela me tocar.
Ouço um barulho vindo do outro lado do colchão, deve ser impressão minha.
Volto a ouvir, inclino o meu corpo para a esquerda, vejo uma mão acenar no fim da cama. Sinto-me a alucinar. Agora vejo um braço, seguido dum perfil de rosto escondido por um cabelo comprido. A pouco e pouco vou vendo um corpo onírico e familiar a sair daquela toca acolchoada.
É ela, completamente nua, a gatinhar na minha direcção com a cabeça baixa. Ao abeirar-se de mim ela coloca as mãos nos meus sapatos, espreguiça todo o corpo cuidadosamente até apoiar o rabo nos calcanhares. Depois sobe as mãos pelas minhas pernas até as deixar ficar com os dedos por dentro das minhas calças e as palmas por fora. Levanta a cabeça como se cada articulação do seu pescoço pedisse autorização à próxima para se erguer. Olha-me de baixo para cima com as pupilas dilatadas e reluzentes, quase lacrimejantes.
-Nuno… Desculpa.
Estava errado, tremi por toda a parte quando ela me tocou. Perdi o equilíbrio, agachei-me abruptamente, com uma inspiração profunda tentei encontrar o meu centro de gravidade com o ar, consegui-o passado alguns segundos. Agarro-a pelas axilas e levanto-a, afago-lhe os ombros.
- Não te desculpes, a culpa não é tua, desculpa, eu não consigo processar tudo isto tão rápido como queria, mas devo conseguir eventualmente. Bora tomar café amanhã?
- Nuno, és demasiado rápido a perdoar.
Ela desata-me os atacadores, apoia a sola dos meus sapatos entre as coxas, tira-os, aponta-me um cadeirão branco foleiro num canto do quarto.
- Senta-te.
Acho que preciso de reaprender a andar, preciso de inclinar o corpo para a frente tanto quanto consigo para apoiar os meus braços nos do cadeirão e rodar a cintura para o assento como um inválido. Ela gatinha na minha direcção, aperta as minhas coxas e faz subir o corpo usando-as como apoio, põe o queixo na minha braguilha.
- Que queres que faça?
- Quero que venhas tomar café comigo amanhã, de tarde, e que esqueças esta noite até eu ter a coragem para a repetir e se tu quiseres, claro.
Ela levanta-se num salto e dá-me um bofetão na cara.
- Nuno, tu sempre quiseste fazer isto comigo, e eu também. Achas que não desejei conseguir foder-te de cada vez que demoravam mais de duas horas a responder-me a uma mensagem? Achas que não desejei destruir essa barreira de frustração e fantasia que nos impede de sermos amigos. Os mais próximos e íntimos amigos. Verdadeiros amigos. Amigos que não se preocupam se demonstram demasiado afecto, ou uma escassez dele. Achas que nunca pensei em ti durante todo este tempo em que não nos falámos? Que não te quis telefonar inúmeras vezes mas não o fiz com o receio de ajudar a espalhar uma doença? Nuno, eu sou uma puta. Eu já fodi bem piores por valores bem mais baixos, tu até és bom de boca. Não anseio foder contigo nem o desprezo, mas anseio abraçar-te sem ficares nervoso, dizer que te amo sem ficares aéreo, ajudar-te sem te sentires patético. Permito-mo, podes usar-me até a tua obsessão passar e quando passar podes usar-me até isso te saber bem. Ficarei sempre feliz por te ver aqui.
- Eu não me sinto desejado por ti.
- Eu também não.
Ficámos bem mais de dez minutos sem falar. A certa altura ela sorrio, e parou de sorrir, e sorrio, e parou de sorrir. Tive medo de lhe perguntar o que se passava.
- Eu acho que o meu senhor teve uma noite muito pesada e precisa de mimo e descanso.
Tive medo de lhe perguntar o que se passava.
Ela ajoelhou-se e começou a massajar-me os pés.
Tive medo de lhe perguntar o que se passava.
Ela começou a beijar-me os pés.
Tive medo de lhe perguntar o que se passava.
- O meu senhor deseja mais alguma coisa?
Tive medo de responder.
Ela passou a mão pelas minhas coxas como se me aplicasse um bálsamo. Descansou a palma nas minhas calças, mesmo em cima da minha pila. Foi apertando gradualmente até eu ficar com uma semi-tusa, depois descomprimia e voltava a apertar enquanto me olhava com um misto de carinho e perversão.
Ela sabia o que fazia.
- Podes, tratar-me por meu amo?
- Com certeza meu senhor, é uma honra meu senhor.
Não é altura para me preocupar com a nomenclatura mas ela…
- Peço perdão meu amo, eu devia tê-lo tratado por meu amo quando mo exigiu mas esqueci-me. Imploro o seu perdão, meu amo.
- Não precisas de…
Ela olha para mim com a mesma reprovação com que me olhava quando eu fazia batota em jogos de cartas.
- Não sei se consigo, eu espero ser tratado duma determinada forma e fico muito desapontado quando tal não acontecesse.
- Mas eu suplico-lhe meu amo, eu suplico-lhe. Não me renuncie por favor. Castigai-me, ensinai-me e eu irei servi-lo como deseja, meu amo.
Dito isto vira-se de costas para mim, deita a barriga na cama e estica o mais que pode o seu cú na minha direcção.
- Castigai-me meu amo, ofereça-me a oportunidade de aprender.
Dou-lhe uma palmada no rabo tímida, outra frouxa e uma cobarde para finalizar.
- O meu amo é demasiado brando para comigo, assim não consigo aprender.
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Três dias desde a angariação do imóvel até ao aperto de mão sobre o documento assinado que selou a venda. Um novo recorde pessoal para Carlos Rebelo. Um novo recorde de agência, na verdade. Pelo menos para uma moradia daquele valor. Diante do seu carro depois de fechado o negócio, Carlos observou o seu reflexo no vidro do lugar do condutor por mais tempo do que era costume. Encheu os pulmões de ar lentamente e ajustou a gravata amarela entre os indicadores e polegares. Sempre gostara daquela gravata. Fazia-lhe lembrar um ator num filme que viu uma vez. Já não se lembrava nem do filme nem do ator, mas fazia-o sentir-se como imaginava que o ator se sentira quando filmou aquela cena.
Estalou o pescoço com um gesto rápido para a esquerda e a direita e tirou a chave do bolso. Não entrou logo. Demorou-se a admirar a sua fotografia profissional na janela lateral traseira. De braços cruzados, com um sorriso confiante e inspirador de confiança. Contemplou com satisfação as letras azuis que percorriam o comprimento da porta. Leu uma vez mais as duas palavras que reluziam ao Sol com especial fulgor naquela tarde. “Carlos Rebelo”. Sentou-se ao volante, ligou o rádio e saboreou o sucesso daquele dia por um último momento. Sabia que a sensação morreria antes de sair do carro. Nas notícias, não havia trânsito.
Entrou na praceta onde vivia, abriu a porta da garagem e estacionou. Cumpriu o ritual de sempre que, como ele próprio, nasceu sem que soubesse bem porquê. Com ambas as mãos, apertou o volante com toda a força que tinha durante dez segundos. Depois relaxou os dedos e pousou a testa sobre os nós dos dedos. Mais dez segundos. O cansaço que pairava em círculos sobre a sua cabeça como um abutre onde quer que fosse desceu e pousou nos seus ombros. Era como um velho animal de estimação indesejado que se recusava a morrer. Acolheu-o com indiferença. Fechou a porta do carro sem olhar para trás e subiu pelas escadas até ao 3º Direito. Abriu a porta do T2 onde morava. O cheiro que o envolvia quando entrava dava-lhe sempre uma sensação de vertigem. E no entanto, se lhe perguntassem a que cheirava a casa, diria que não cheirava a nada.
“Tranca a porta!”, ordenou Alberto Rebelo enquanto Carlos começava a fazer isso mesmo. A mesma ordem desnecessária todos os dias, sem falhar.
“Já está, pai.”, respondeu Carlos, resignado. Dirigiu-se ao quarto de onde veio a voz. As garras do abutre crisparam-se.
O Sol nunca entrava naquele quarto, mesmo em dias de Verão como aquele. As janelas do quarto do pai não eram para abrir. Nunca. Apenas uma das regras daquela divisão em particular. No total seriam tantas quanto os tomos que a debruavam a toda a volta. Talvez fosse dos livros que vinha o cheiro que lhe dava vertigens. Ou talvez fosse do seu pai. Ou talvez das regras. Não sabia. A única luz permitida no quarto vinha de um antigo candeeiro metálico que iluminava a secretária onde Alberto Rebelo se sentava a ler todos os dias. Carlos entrou no quarto. O seu pai continuou a folhear o livro, imperturbável.
“Tudo bem, pai?”, disse Carlos enquanto tirava a gravata. “Hoje cheguei mais cedo.” Desfez o nó e deixou-a pender dos dedos como a língua de um animal morto.
Não houve resposta. Apenas o som de outra página a ser virada.
“O que está a ler hoje?”
Pesadas pálpebras ergueram-se sobre os pequenos óculos quadrados e escrutinaram Carlos do outro lado da secretária de madeira escura. O olhar silencioso do seu pai sempre produzira nele a mesma sensação de pequenez e desespero. A sua maçã de Adão deu um pulo nervoso, profeticamente liberta do grilhão da gravata.
“Nada que fosses capaz de perceber”, resmungou Alberto. “Tenho os pés inchados do calor. Vai buscar o alguidar.”
Sem dizer uma palavra, Carlos dirigiu-se à cozinha e encheu um alguidar com água da torneira. Agarrou as abas com quanta força tinha. Dez segundos. De seguida, foi buscar uma esponja à casa de banho. Amarela, do mesmo tom que a gravata. A gravata... Onde estava a gravata? Tinha-a na mão ainda há pouco, não podia ter ficado na cozinha. Onde deixou ficar a gravata? O pensamento foi interrompido pelo seu nome a ecoar pela casa como um trovão. Com passos curtos para não entornar água no soalho de taco envernizado, voltou para o quarto.
Alberto Rebelo fechou o livro, tossiu para um lenço de pano e, com infinita lentidão, manobrou a cadeira de rodas até ao sofá onde costumava deitar-se quando não estava a ler. Carlos sentou-se num pequeno banco e começou a molhar os pés do seu pai com a esponja.
A água escorria pelos tornozelos raiados de veias. As têmporas de Carlos encheram-se de gotículas de suor, receoso. Por fim, encontrou a coragem para falar.
“Pai, lembra-se daquela moradia no Estoril que angariei há três dias? Aquela com a zona comum envidraçada no piso superior? Vendi-a hoje. A comissão vai ser grande.”
Alberto contraiu os lábios. As sombras das rugas projetadas no seu rosto pela luz do candeeiro da secretária pareceram ficar mais escuras.
“Parabéns”, respondeu. A palavra pingava sarcasmo. “O teu irmão ligou ontem. Disse que o tumor da Dona Lurdes e operável. Já marcou a cirurgia e vai tirá-lo amanhã.”
O escárnio na voz do seu pai escondia a desilusão como uma peneira.
“Eu também sou bom no que faço, pai.” Só quando terminou a frase é que Carlos se apercebeu do quão efeminada lhe saíra a voz quando proferiu aquela infantilidade, quase como um miado.
“Pois, eu sei que és bom a vender as casas dos outros. És bom agente imobiliário. E o que é que é preciso para se ser agente imobiliário? É preciso querer ser agente imobiliário. Tens um emprego que qualquer um pode ter desde que queira. Mas vais para o trabalho de fato. Parabéns.”
Carlos espremeu a esponja. Continuou a espremê-la depois de expulsa a última gota até sentir as próprias unhas a afundarem-se na palma da mão.
“Olha, eu também era bom no que fazia quando ainda andava.”, prosseguiu o seu pai no mesmo tom. “Era bom porque estudei para isso. Como o teu irmão. E tu, fizeste o quê? Andaste no café a beber cerveja e a jogar matraquilhos com os idiotas dos teus amigos quando devias ter estudado. Agora és um vendedor sem qualificações que ganha uns trocos mês sim mês não. E orgulhas-te disso, o que é ainda pior.”
Carlos baixou a cabeça para o pai não lhe ver as lágrimas. Espremeu novamente a esponja e passou-a pelos pés ossudos.
“Poupa-me das tuas histórias de sucesso, Carlos. Agora lava-me mas é os pés e cala-te. Tenho de sustentar-te mas não sou obrigado a ouvir-te.”
No quarto apenas se ouvia água a escorrer e a respiração pesada de um velho. Mas o velho não dissera ainda tudo o que tinha a dizer. Recostou a cabeça para trás e concluiu com um lamento final.
“A tua mãe sempre soube que não prestavas para nada. Não herdaste nada do que ela tinha de bom, e só não posso dizer o mesmo de mim porque me ficaste com o apelido.”
Carlos nunca viria a compreender o que fora diferente naquele dia que o fez fazer aquilo que fez a seguir. Afinal, o pai sempre lhe falara assim. De um salto, levantou-se e mergulhou a esponja dentro da garganta do pai com tanta força que cortou as costas da mão nos seus dentes podres. Com a outra, tapou-lhe o nariz. O velho esbracejava e fazia estranhos sons, como se estivesse a soluçar. Carlos fitava-o sem expressão. Pouco a pouco, os braços do seu pai foram perdendo as forças, como um maestro que se aproxima do fim de uma peça. Momentos depois, a luta terminou. Carlos retirou a esponja da boca do pai e aproximou um ouvido da sua boca para confirmar que estava morto. Com o seu último fôlego, Alberto Rebelo, reputado professor catedrático de Neurologia, sussurrou uma última palavra, um chamamento repetido até ao seu derradeiro batimento cardíaco: “Luís… Luís… Luís…”
Luís Rebelo, cirurgião cardiotorácico. Filho primogénito. Orgulho do seu pai.
Na manhã seguinte, o Sol reluzia novamente na porta do carro sobre o nome “Carlos Rebelo”, agente imobiliário, enquanto este conduzia na autoestrada com o corpo do seu pai sentado no banco ao seu lado. Seguia para Norte, em direção a um local a poucos quilómetros da aldeia de Pé da Fonte, um pouco antes do Minho. Anos atrás tinha ido lá ao funeral de um tio-avô que só tinha visto uma vez e perdeu-se pelo caminho. Acabou por ir parar a uma estrada abandonada que levava a uma ponte velha e, logo a seguir, a um pântano que ficava longe de qualquer forma de civilização.
Encontrou o sítio sem dificuldades apesar de ter estado absorto nos seus pensamentos durante toda a viagem. Só descobriu que estivera quatro horas e meia a conduzir quando olhou para o relógio. Parou diante do pântano e travou o carro. O chão tinha um ligeiro declive e a vegetação circundante era rasa. Sentiu-se subitamente nauseado. A familiar sensação e vertigem voltara. Apercebeu-se de que o cheiro no carro era agora o mesmo que permeava cada recanto da sua casa. A cabeça do seu pai tombara para a esquerda com os solavancos. Mesmo de pálpebras fechadas para sempre, parecia julgá-lo.
Carlos sentia-se aliviado como nunca se tinha sentido, apesar do incómodo visceral causado pelo odor. O pai finalmente estava morto. E dali a pouco os seus pés lavados estariam a apodrecer com o resto do seu corpo num pântano no meio de lado nenhum.
Imaginou a satisfação de ver o seu pai afundar-se no limo diante de si. Sabia que o momento marcaria o início de uma nova etapa da sua vida. Pela primeira vez seria livre. Ansioso, puxou o manípulo para abrir a porta do carro.
Mas a porta não abriu.
Puxou com mais força, mas a porta continuou fechada. O seu pai continuava a fitá-lo. Com uma mão apoiada no osso da perna magra do cadáver, tentou abrir a porta do outro lado. Inútil. Parecia estar soldada. Os vidros também não abriam. Talvez fosse pelo facto de o carro estar desligado, pensou. Tentou ligar o motor. Girou a chave na ignição várias vezes. Silêncio. Tentou abrir as portas traseiras. Trancadas. Um sentimento de pânico começou a invadi-lo. O calor dentro do carro tornou-se subitamente insuportável. Tirou o casaco do fato, mas mesmo assim parecia não conseguir mexer-se. Sentia na cara o calor do próprio hálito. Ofegante, enrolou o casaco no braço e bateu no vidro com quanta força tinha. Era como tentar partir aço. Tentou em vão mais algumas vezes até que, frustrado, atirou com o casaco para o banco traseiro. Quando o fez, uma gravata amarela voou do bolso interior e caiu no travão de mão. Nas horas seguintes, tentou partir o vidro dianteiro com pontapés, com os cotovelos, com murros, sem qualquer efeito. Chegou mesmo a usar a testa do seu pai como aríete contra o vidro. Finalmente, resignou-se à necessidade de chamar ajuda, ainda que isso significasse revelar o seu crime e ser preso. Naquele momento faria tudo para sair dali. Não tinha ninguém a quem telefonar exceto a polícia. Pegou no telemóvel. Desligado. Não era possível, tinha a bateria completamente carregada quando saiu de casa. E no entanto, era impossível ligá-lo.
Os seus gritos embaciaram os vidros, e só de forma difusa conseguia agora ver a cor glauca do pântano diante de si. As horas passaram e a noite caiu. Contudo, o calor não diminuiu, e o pó que saiu dos estofos durante a sua luta para sair continuava a impregnar o ar e enchia-lhe o peito sempre que inspirava. O cheiro que emanava do seu pai parecia entrar-lhe na própria mente, no lugar secreto das memórias horríveis que dentro do túmulo em que se tornou aquele carro voavam livres como demónios desencarcerados e torturavam-no com a força de anos de abuso a cada segundo que passava. Quando a noite o envolveu, pousou a cabeça no colo do seu pai e começou a chorar como uma criança perdida. Mas dos olhos não lhe saíam lágrimas.
Acordou na manhã seguinte com a canção de pássaros que não conseguia ver através dos vidros embaciados. Desta vez não descobriu o abutre pousado nos seus ombros. Via-lhe o vulto do lado de fora, pousado no capô, à espera. Quanto tempo esperaria até que morresse de fome? Ou de sede? A imagem do que teria de comer dentro do carro para sobreviver passou-lhe diante dos olhos. Olhou para o crânio rachado do seu pai e viu o líquido vermelho-esbranquiçado que escorreu da fenda que abriu quando o esmagou contra a janela. Levou uma mão à boca para conter a vontade quase insuportável de vomitar.
E foi então que reparou que não tinha fome nem sede. Não estava fisicamente cansado. Não tinha vontade de ir à casa de banho, apesar de se ter passado quase um dia inteiro desde que ficara aprisionado. Não se sentia sujo nem transpirado. Estudou com atenção as costas da mão com que tinha enfiado a esponja na boca do pai e procurou as feridas causadas pelos dentes. Não estavam lá. Ainda de mão erguida, Carlos apercebeu-se de que o seu corpo já não projetava sombra. Testou a luz do Sol de vários ângulos e confirmou que era verdade. A única sombra no carro era agora a do cadáver do seu pai, que cobria parcialmente as suas pernas. Carlos encostou-se no banco do condutor e sentiu-se paralisado. O tempo abandonara-o, e levara consigo a sombra e a morte.
Nas semanas que se seguiram, o corpo de Alberto Rebelo mudou de cor e o cheiro da podridão começou a causar espasmos constantes a Carlos. Tentou vomitar várias vezes, mas nada era expulso do seu estômago. Chorava, mas de olhos sempre secos. A fome, a sede, a luz e a dor física não lhe tocavam. Ao longo dos meses tentou suicidar-se de todas as formas que conseguiu conceber com os instrumentos que encontrou naquele espaço exíguo. Não tinha espaço para se enforcar com a gravata, por mais que tentasse. Os fragmentos contundentes que conseguiu fabricar com os plásticos do interior do carro não lhe furavam a pele. Tentou sem sucesso sufocar-se com o telemóvel. Na sua busca de formas de morrer, descobriu que por algum motivo desconhecido o isqueiro do carro ainda funcionava. Pressionou o pequeno ponto incandescente contra o peito, os pulsos e os olhos, mas arrefecia sempre antes de lhe causar qualquer mal. Somente passado mais de um ano aceitou que tirar a sua própria vida estava tão fora do seu alcance quando devolvê-la ao corpo morto com que a partilhava.
Dois anos depois, Carlos já se tinha esquecido de como se falava. Dormia todas as noites ao colo do que restava do seu pai, balbuciava durante horas, dormia novamente, acordava, e esperava por nada. Sonhava muitas vezes com a moradia do Estoril – a última que tinha vendido. Via-se lá a chapinhar na piscina ou a receber amigos na zona comum envidraçada no piso superior. Outras vezes, sonhava apenas que estava em casa. Não sabia de onde vinha qualquer uma dessas memórias. Seriam realmente memórias? Não conseguia lembrar-se se alguma vez tinha vivido fora daquele carro. O mundo exterior não era mais do que a luz fosca que penetrava o vidro sujo. O mundo real, o verdadeiro mundo exterior, a totalidade do universo era o interior do seu carro.
Quatro anos.
Carlos vivia nu no carro. Há muito que mastigara a sua roupa. Passava grande parte dos dias a mastigar coisas, em especial partes do carro. O volante, os estofos, os plásticos. Não era capaz de engolir e não tinha fome desde o dia em que matou o seu pai, mas a sensação de mastigar fazia-o sentir-se bem. Às vezes mastigava partes do corpo do seu pai. Outras, mastigava as próprias mãos.
Um dia, numa tarde de Sol abrasador em que a temperatura do carro teria matado qualquer outro humano, enquanto brincava com o isqueiro do carro, Carlos queimou a perna mumificada do seu pai e o cheiro excitou algo dentro de si. Deu uma dentada no pedaço de pele cozinhado e sentiu algo que não sentia há muito tempo. Sentiu prazer. Sofregamente, começou a queimar e a mastigar o fino tecido cutâneo que cobria o esqueleto esverdeado. No transe em que estava não percebeu imediatamente que o que sobrou da roupa que cobria o cadáver estava agora a arder. Quando viu as chamas, Carlos cuspiu os pedaços ensalivados de pele do seu pai que lhe enchiam a boca e começou a saltar simiescamente enquanto tentava apagar o fogo como um animal enlouquecido. O universo encheu-se de fumo. As suas mãos não se queimavam, mas o fogo não parava de crescer, e no espaço de poucos minutos tudo no interior do carro ardia. Tudo menos Carlos.
Envolto por chamas que não lhe tocavam, Carlos começou então a rir loucamente. Uma parte entorpecida da sua mente compreendeu que a liberdade estava a caminho. A sua prisão ardia, a luz da esperança que apodrecera com o seu pai reacendeu-se. Algo semelhante à lucidez devolveu-o a si próprio. O seu riso troou entre as labaredas. Os seus grunhidos extáticos quase se assemelhavam a palavras. O sonho do exterior em breve tornar-se-ia realidade. O exterior existia. O exterior era verdade e estava a caminho.
De súbito, algo que Carlos julgou ser impossível aconteceu: o carro começou a mover-se.
As rodas do carro incandescente, há muito presas na lama e detritos, rodaram. Primeiro devagar, depois mais rápido, em direção ao pântano. A pele seca de Alberto ardia violentamente. Dilatada pelo calor, a sua mandíbula abriu-se e caiu. As rodas dianteiras do carro entraram no pântano. Carlos gritou como nunca antes tinha gritado. Gritou ininterruptamente como quem não precisa de respirar. A água inundou o piso do carro e começou a apagar as chamas. Carlos ainda gritava o mesmo grito, de pulmões infinitamente cheios de ar e dor. Antes de ser envolvido pelo pântano, pareceu-lhe ouvir o som da voz do seu pai a sair do crânio desfeito que o fitava de lado, ainda em chamas.
“Luís…”
A água lamacenta engoliu o carro. Já não havia fogo. O abutre estava morto, afogado. Já não havia calor, nem vidros embaciados, nem cheiro, nem vertigem. Tudo o que existia era escuridão. Todo o universo era água, lama e escuridão. E no seu centro, sentado no lugar do condutor, no fundo do pântano, Carlos Rebelo. Agente imobiliário.
Takayanagi Hirokazu não se estava a sentir presente outra vez.
A sirene da ISS Providence voltou a disparar. Takayanagi já o tinha ouvido várias vezes ao longo
da sua vida, mas por mais vezes que o tivesse ouvido, era impossível habituar-se. Não era o
apito agudo de um alarme terrestre, no espaço esse tipo de alarmes era ineficiente para
tripulantes cuja capacidade auditiva já tivesse sido afectada por muitas viagens no espaço. Este
alarme era um lancinante grito de metal que subia e subia e subia como a maré, um ronco grave
e poderoso como que fazia os ossos tremer e o estômago enrolar-se numa bola negra de medo.
A nave era um animal moribundo, e ele um animal acossado no seu interior. E ainda que a
temperatura estivesse a subir rapidamente no interior da Providence, e os corredores se tivessem
tornado num inferno, Takayanagi batia os dentes.
ESTÚPIDO, ESTÚPIDO, ESTÚPIDO HOMEM.
ESTÚPIDO, INCONSEQUENTE HOMEM.
COBARDE. TRAIDOR. VIL.
FRACO.
Ele sabia!!!
(Oh, perdoem-me! Oh por favor, por favor, por favor perdoem-me!!!)
Ele sabia que aquela trajectória era impossível. Que o isolamento não estava preparado para
aquelas temperaturas. O sistema de refrigeração iria falhar e ninguém naquela nave
sobreviveria. Ele matara-os a todos e sorrira durante três meses. Takayanagi queria vomitar só
de pensar no quão nojento ele era. Nem sequer tinha coragem para se suicidar. Ele apenas
sorrira e dissera que tudo ia correr bem para não lhe baterem.
DEVIAS TER SIDO ATIRADO AO ESPAÇO QUANDO AINDA ESTAVAM TODOS VIVOS!
Teria sido de facto apropriado. Ele ao menos teria morrido.
A sirene voltou a tocar e Takayanagi protegeu a sua cabeça do som, lágrimas a escorrerem pela
sua cara, um poço infinito no seu coração.
No espaço, uma pessoa está presa pela geometria. Takayanagi conseguia ver na sua cabeça, a
trajectória da nave, uma hipérbole apertada à volta do Sol, cinco vezes mais próxima que
Mercúrio. Demasiado perto. Durante semanas, a tripulação do Providence viu a estrela a
aproximar-se, esperando, rezando para que a nave sobrevivesse um tal encontro. E à medida
que a nave acelerava até cem quilómetros por segundo e começava a descrever uma curva
desesperada a dez milhões de quilómetros da superfície do sol, ninguém conseguia tirar os
olhos do disco solar. Do deck de observação ele era um círculo branco, perfeito, num mar de
negro. Cada vez maior, cada vez mais próximo. Tinha sido ele a propôr o percurso.
Os primeiros a morrer tinham sido os engenheiros a tentar impedir que os reservatórios de
água rebentassem com a pressão. Cinco pessoas morreram nesse dia. Era tudo culpa dele.
(Oh, o que fazer? O que fazer? O que diriam se soubessem que tinha sido culpa minha?!)
Ele vira através do sistema de vigilância o principal depósito de água a explodir e a matar todos
os que estavam no porão hidráulico. O depósito desfez em pedaços todos os que estavam
demasiado próximos. Os que não tinham sido imediatamente mortos levaram com a água a
ferver. Pelas câmaras parecia ser apenas água normal... Mas depois, os sobreviventes
começaram a vir à tona. E a gritar. E antes que as câmaras embaciassem por completo, a
capitão Tembe cortara a ligação com o porão. Mas mesmo depois de mortos, eles continuaram
a gritar na cabeça de Takayanagi. Ele não sabia que seres humanos eram capazes de produzir
aqueles sons.
DEVIAS TER MORRIDO.
EU DEVERIA TER-TE SUFOCADO COM UMA ALMOFADA QUANDO NASCESTE.
DEVERIA TER ENFIADO UM CABIDE PELA MINHA CONA ACIMA E TER-TE
ARRANCADO DE LÁ DE DENTRO, ANTES DE PARIR UM INÚTIL.
Subitamente, Takayanagi era de novo um miúdo assustado e a senhora Takayanagi, a maior cabra de toda
Kanto tinha um dos seus fequentes ataques de fúria.
♦
Tudo começara com o cilindro.
Ele surgira na rota da Providence, apenas três semanas depois desta ter deixado o sistema
croniano, rumo à Terra, com os porões cheios de hélio-3. Em qualquer outra situação, a
Providence nem pararia para observar um objecto tão pequeno, mas não só a sua órbita era quase
paralela à órbita da nave, como a sua velocidade era praticamente igual à da nave,
permanecendo a uma distância alcançável pela tripulação por um período de 26 horas. Era
quase como se este objecto quisesse ser por eles descoberto. E por um momento, a ponte da
Providence parecia ter ficado mais fria.
Takayanagi não estava preparado para a primeira vez que vira o cilindro. Ninguém estava. O
cilindro era cristalino, quase transparente, três vezes mais alto que um homem, e a luz
refractava e reflectia no seu interior em ângulos impossíveis revelando circuitos invisíveis que
brilhavam por um segundo e imediatamente desapareciam. Era de cortar a respiração.
Nenhuma mão humana poderia ter feito aquele objecto. Quando Mansell e Pascutiu o
trouxeram para a doca das máquinas, ele flutuou pela comporta aberta com incrível lentidão
enquanto a Providence girava à sua volta. Ao lado de Takayanagi, Jane, a oficial de comunicações,
começara a chorar convulsivamente.
O sol, àquela distância nada mais que um farol distante num abismo infinito, começou a brilhar
através do corpo do objecto e subitamente o cais ficou iluminado a dourado e vermelho, como
num terrível crepúsculo. Enquanto os astronautas passaram cintas em torno do cilindro as
portas se fechavam-se e a luz na doca tornava-se progressivamente laranja e depois vermelha e
depois magenta, cada vez mais ténue, cada vez mais fraca. Ao trazerem-no para o cais e ao
amarrarem as cintas aos cunhos, o leviatã começou a girar com a Providence, desenhos de luz a
fugirem pelas paredes. Finalmente a comporta exterior fechou-se e o cilindro desapareceu,
apenas o reflexo do seu contorno e as cintas à sua volta como a única indicação visível que ele
ainda lá estava.
A tripulação da Providence fez uma grande celebração umas horas depois. Na messe, as cinco
garrafas de champanhe reservadas para celebrar a passagem de ano foram abertas e Nassiri
preparara uma refeição especial para todos. Como festa, era frugal, mas ninguém o diria.
Bayard tinha tomado conta do sistema de som da nave e começara a passar música pesada para
todos ouvirem. As luzes da messe tinham sido baixa e o pouco espaço que havia na sala foi
tornado numa pista de dança. O Posto de Comando em Pequim confirmara a inexistência do
registo de qualquer veículo de origem terrestre a orbitar na região do espaço em que eles
transitavam. Pequim também confirmara as suspeitas de Takayanagi — se os dados recolhidos
sobre a sua trajectória estavam correctos, com grande probabilidade, o cilindro não poderia ter
vindo do interior do Sistema Solar. Toda a gente parecia estar um pouco de cabeça perdida. Até
Teaiwa, a tripulante mais velha da Providence estava a dançar com os dois rapazes russos. E
Sidibé, o biólogo, por não estar habituado ao álcool teve de ser transportado para a sua cama.
Na festa Takayanagi dançou todo o tempo com Jane antes de os dois irem para a sua cabine.
Enquanto faziam amor, Jane voltou a chorar de mansinho como uma criança tímida. Hirokazu
tentou parar mas Jane abraçou-o e beijou-o e assegurou-lhe que ela estava feliz e não sabia o
porquê de se sentir assim. Ele tentou convencer-se que era verdade, que Jane estava feliz, mas
ele olhava-a nos olhos e só conseguia ver uma rapariga triste e assustada.
Ele só se conseguiu vir quando ela se pôs de costas. E assim que a maré do orgasmo vazou e a
consciência de Hirokazu emergiu, com ela emergiram os escombros de um terrível pensamento
que ele pensava já ter desaparecido há muito e que o encheu de um horror puro e límpido como
já não sentia há anos. Ele tinha-a magoado.
(Oh não...)
Ela era bonita e sensível e inocente e querida e tão nova, tão nova e ele tinha-a magoado. Ele
podia ter parado a qualquer momento mas não o tinha feito.
VERGONHA!
Hirokazu saiu de dentro dela e encostou-se à parede atrás dele, silenciosamente sentindo-se
bastante mal. A clareza com que ele o via era desarmante, como se lhe tivessem tirado uma
venda dos olhos e ele finalmente visse o quão desprezível ele realmente era. Jane beijou-o
gentilmente nos lábios
(Que vergonha...)
e secou-lhe os olhos. Takayanagi sentiu-se mesmo patético nesse momento.
"Porque é que não me disseste que não estavas a gostar?"
"Mas eu estava... Desculpa. Eu estava a gostar...”
Takayanagi voltou a chorar enquanto era abraçado. O que poderia ele fazer?
PORCO!
Ele era um porco e só pensava nele. Como poderia ela dizer uma coisa daquelas depois de tudo?
Como poderia ela ser tão boa com ele depois daquilo que ele lhe tinha feito? Ele beijou-a de
novo com força e utilizou-os seus dedos e a sua língua para a fazer vir. E enquanto o fazia, ele
conseguia sentir o sabor das suas lágrimas na cona dela.
Subitamente, Hirokazu era de novo um miúdo assustado e a senhora Takayanagi, a maior cabra de toda
Kanto tinha um dos seus fequentes ataques de fúria. Ele tinha batido em Haru, um rapaz seis anos mais
velho que o atormentava durante as suas aulas de natação. Ele apalpava-o regularmente, fingia foder nos
chuveiros com um amigo e chamava-lhe nomes cada vez que ele lhe olhava. Até ao dia em que Hirokazu o
apanhou distraído no balneário e aproveitou para trazer o cabo do camaroeiro de metal da piscina e partir-
lhe a cara com ele. Hirokazu tinha onze anos na altura, mas era alto para a idade e mais forte do que parecia
e tinha conseguido dar-lhe umas quatro ou cinco vergastadas com o camaroeiro antes de Haru conseguir
tirá-lo das mãos, encostá-lo à parede e esmurrá-lo até alguém os vir separar. Hirokazu manteve-se calado em
relação às razões pelas quais ele tinha atacado Haru e foi proibido de voltar à piscina. Mas isso não
importava. A única coisa que importava era aquilo que a mãe lhe faria quando soubesse do sucedido.
Por mais que o filho lhe tentasse explicar, ela não quiz saber da versão dele. Depois de uma sessão de gritaria,
ela arranjou dois sacos de ervilhas congeladas e obrigou-o a ajoelhar-se sobre as ervilhas todos os dias
durante um mês, inspeccionando as dezenas de pequenas feridas circulares com que ele ficava nos joelhos até
se decidir se já bastava pelo dia. Após o terceiro dia, Hirokazu começou a chorar e a dizer que estava
arrependido.
“Não o suficiente” respondeu-lhe a mãe.
Todos os dias durante o resto do mês Hirokazu chorava enquanto as ervilhas se lhe enterravam um pouco
mais nos joelhos e a senhora Takayanagi gritava se ele soluçava demasiado alto e no fim do castigo,
obrigava-o a lavar os sacos se houvesse sangue neles. No último dia, quando a senhora Takayanagi disse que
ele já estava suficientemente arrependido, Hirokazu deixou-se tombar para o lado e sentiu-se como se tivesse
nascido um novo sol dentro dele. Ele olhava para cima, para a senhora Takayanagi, e só sentia gratidão.
Ele olhou para cima, para Jane, e só sentiu gratidão.
♦
Jane e Hirokazu tornaram-se amantes.
Ele não tinha memória de alguma vez se sentir assim com ninguém. Uma marinha tristeza tinha
tomado conta dos seus dias, mas quando estava com ela, a sua dor parecia fazer sentido. Eles
não se conheciam — até à festa a sua relação tinha sido meramente profissional — mas... de
alguma misteriosa maneira... ela sabia quem ele era. Não eram necessárias explicações. Nem
sequer falavam muito. Tudo o que havia para dizer, parecia ser de certa forma redundante.
Enquanto fodiam, Hirokazu sentia-se finalmente em casa. E a Providence girava sobre o seu
próprio eixo, e eles rodavam com ela, e os dois descreviam um círculo perfeito no vazio.
♦
Dois dias após a recolha do cilindro, Sidibé recebeu a notícia que na Terra, Hélène, a sua filha
mais nova tinha morrido num acidente. Sidibé recebera a mensagem privada na ponte da
Providence, directamente da boca do director do Posto de Comando em Pequim. O homem
emitira um guincho agudo e caíra de joelhos no chão. Ele só começou realmente a gritar
quando Van Zandt o abanou.
Foi necessária a força de cinco homens para segurarem Sidibé tempo suficiente para que Askaa,
o enorme médico mongol da Providence, o pudesse injectar com um sedativo. Tembe, meteu
imediatamente Sidibé de baixa e passou o posto de chefe biólogo para Teaiwa até que Sidibé se
recompusesse.
Mas Sidibé não se recompôs.
Na primeira semana, se Sidibé não estava trancado no seu camarote, ele vagueava sem direcção
pela nave, de vez em quando a falar com as paredes.
Todos os dias, nas reuniões de oficiais, Askaa fazia updates progressivamente mais alarmantes
sobre o estado clínico de Sidibé. Desde a chegada da notícia, ele tinha começado a ser
atormentado por uma série de pesadelos, sobre a sua filha mais nova a morrer num incêndio.
Maior parte deles envolviam Hélène a aparecer-lhe a meio da noite na sua cabine a perguntar-
lhe porque é que ele a tinha abandonado. Sidibé nesses sonhos tinha tentado abraçar a sua filha,
mas ela sempre recuava e acabava por fugir para o corredor. E quando a porta se abria, Sidibé
via toda a nave em chamas.
Askaa acreditava que Sidibé também conseguia ver o fantasma da filha quando estava acordado.
Sidibé foi colocado sob vigia periódica. Nada muito restritivo, apenas o suficiente para que
Sidibé não se isolasse e alheasse do mundo real, nem estivesse exclusivamente acompanhado
pelo médico de bordo. Finalmente, a meio da segunda semana, Sidibé pareceu dar sinais de
estar recuperar alguma da sua antiga estabilidade mental.
Um dia, o biólogo fez a Askaa uma descrição do incêndio que ele via nos seus sonhos. A
tripulação tinha desaparecido, mas ele não estava sozinho. Escondidas pelo fumo, figuras
albinas vagueavam sem destino pelos escombros da nave, alheias ao incêndio que lavrava. Elas
eram esquálidas e emaciadas, esqueletos do qual a pele ainda pendia em pregas, como um fato
demasiado grande. No lugar da cara, apenas uma boca enorme cavernosa que tudo sugava —
tão negra e profunda que quem para lá dentro olhasse, conseguia ver estrelas.
No dia seguinte, Sidibé suicidou-se.
Niankoro Sidibé fechou-se na Estufa 2, abriu os tanques de oxigénio e pegou fogo ao seu
interior. O sistema de emergência da Providence foi activado a tempo, por isso as chamas não se
espalharam pelo resto da nave, mas tudo o que estava dentro das comportas foi carbonizado.
Dióxido de carbono em massa foi despejado na estufa e o incêndio foi rapidamente controlado.
Assim que o fogo foi apagado, Tembe mandou Mansell e a sua equipa abrir a estufa e tentar
salvar aquilo que não tinha sido consumido pelo fogo. Mas como a equipa de rescaldo pôde
apurar, não havia nada para salvar. No espaço de 9 minutos tinha havido uma estufa e deixara
de haver uma estufa.
Os restos mortais de Sidibé encontravam-se junto a uma das portas de saída. O fogo tinha
ardido com tanta força que quando Hui tentou pegar no corpo, este desfez-se em cinzas, como
uma má memória. Sem mais nada que fazer naquele local, Mansell ordenou que a estufa fosse
selada até chegarem a Terra.
♦
(Oh, foda-se, foda-se, foda-se! Oh merda!)
Na reunião de oficiais que se seguiu, toda a gente estava com os nervos em franja e Takayanagi
não era diferente. Segundo os cálculos do computador, que demonstrava os seus cálculos em
desanimadores gráficos 3D, com a destruição da Estufa 2, a Providence não teria oxigénio
suficiente para uma tripulação de vinte e dois chegar viva a Terra. Nem Marte nem Vénus eram
opções viáveis para atracar. As órbitas deles não estavam em caminho e não havia combustível
suficiente para alterar a trajectória de maneira tão drástica.
Por descargue de consciência, Tembe perguntou ao computador quantas pessoas é que teria de
ter a tripulação e quanto tempo é que vinte e duas pessoas teriam com aquela quantidade de
oxigénio. A resposta foi ainda mais desanimadora: Vinte e duas pessoas só durariam 127 dias
naquela nave, quando era necessário oxigénio para 164 dias. Para que o oxigénio não fosse todo
usado até ao dia 164, cinco pessoas precisavam de morrer nas próximas horas, ou seis, durante a
próxima semana e todos os que não fossem absolutamente essenciais, teriam de ser colocados a
dormir, sem garantia de alguma vez acordarem.
Fez-se silêncio à mesa.
(Pensa, cabrão, pensa... O que é que podemos fazer?)
Takayanagi fazia contas de cabeça, ao combustível disponível, à velocidade e à inércia da
Providence. Mudar de rumo para Calisto estava fora de questão, Júpiter estava demasiado longe
para ser um plano viável. E não podiam gastar mais hélio do que aquele que já estava a ser
utilizado, sob risco de sobreaquecer os motores.
Eles iam morrer...
Ninguém iria ser morto, Tembe não o permitiria. Ela iria ser chamada a tribunal interplanetário
se deliberadamente mandasse matar alguém. Todos seriam.
Eles iriam sufocar nesta nave.
(Oh não!)
Ele não podia morrer, ele não podia morrer! Não daquela maneira!
INÚTIL!
A palavra era tão grande que o pensamento de Takayanagi parou e os seus olhos caíram
imediatamente sobre o tampo de metal da mesa. As caras de Tembe e Mansell a reflectirem-se
na superfície riscada.
Estava certo, ele era um inútil. Ele sempre foi um inútil. Porque é que ele sequer estava ali?, ele
não deveria estar ali. Toda a sua vida ele fizera-se passar por um entendido em navegação,
quando os computadores faziam todos os cálculos. Ele era a pessoa que deveria ter uma solução
viável neste momento e a sua cabeça estava vazia com a excepção de
INÚTIL!
“Como é que fazemos, então?”
“Tiramos à sorte?”
“Isso não faz sentido nenhum, existem cargos que não se podem perder.”
“Exacto, a Marta e a Trini tiram ambas o pauzinho curto e deixamos de ter informáticos a
bordo.”
“Nem podemos perder o médico.”
“Devíamos perguntar ao computador quem é que é mais dispensável.” cortou Van Zandt.
Podia-se ter ouvido um alfinete cair.
ÉS UM INÚTIL, HIROKAZU...
“O quê?” perguntou Elsayed.
“Ouviste-me bem. Nós devemos perguntar à Providence quem mais depressa pode ser
dispensável. Considerando que...”
“Isso não é ético!...”
“...a Providence é um sistema de computadores...”
“Não o podemos fazer!”
“...cuja inteligência é superior...”
“Não é justo!”
“...à de qualquer um de nós, Karim, nós devemos...”
SE ELES PUSEREM O COMPUTADOR A ESCOLHER, TU MORRES.
Não, não pode ser, eles vão precisar de um navegador! Mas não era verdade, qualquer pessoa
poderia fazer o seu trabalho. A Valenzuela podia fazer o seu trabalho, Van Zandt poderia fazer o
seu trabalho, a
(Jane)
Lazzaroni poderia fazer o seu trabalho... A porra da própria
(Jane)
Tembe poderia fazer o seu trabalho!
“...seguir a lógica. E ao contrário do que qualquer um de nós faria, a Providence não vai tomar
partido de ninguém.
(Nunca tinha reparado quantos riscos tem de facto esta mesa.)
Se o meu nome aparecer na lista dos escolhidos para morrer, eu só posso aceitar.”
(Oh, não...)
DEIXA-ME TRATAR DISTO.
(O q?...)
E foi então que Hirokazu Takayanagi deixou de se sentir presente. Como uma marioneta,
Takayanagi levantou-se da cadeira onde estava sentado. Van Zandt e Elsayed continuavam a
gritar um com o outro, mas Takayanagi não os ouvia. Ele sabia que este tipo de coisas
aconteciam em desastres — o sistema límbico assumia o controlo da situação e fazia as coisas
por ele, mas não estava preparado para isto.
Foi então que lhe surgiu uma ideia louca. Ou então ela sempre lá estivera. E antes que ele
tivesse tempo de pensar, a sua boca funcionou:
“Eu proponho virarmos a nave em direcção ao Sol.”
“O que é que queres dizer com isso?”
“Se a rota for alterada em 10 graus a Providence cairá em direcção ao Sol. Poderemos utilizar o
poço gravitacional do Sol para nos acelerar e corrigir a nossa rota, tornando o nosso trajecto
mais curto e mais rápido. O suficiente para chegarmos a Terra a tempo.”
Todos olhavam para ele.
“Essa trajectória é bastante perigosa.” contrapôs Tembe.
“A nossa nave está construída para sobreviver a temperaturas de 700 graus. Estamos
suficientemente distantes para que nós não tenhamos de passar tão próximo da coroa solar para
que consigamos chegar a Terra.”
Silenciosamente, Takayanagi foi largado e passou a estar em total controlo do seu corpo. Ele
tremia como varas verdes. Não sabia o que se tinha passado. Toda a gente na ponte olhava para
ele.
(Merda...)
Ele baixou os olhos e pôs-se a fazer os cálculos no seu computador de bolso, mas os seus dedos
estavam a tremer — todo ele estava a tremer! — e por mais que ele tentasse, ele não conseguia
carregar nas teclas certas. Tembe interviu.
“Providence, podemos fazer este percurso?”
O computador não respondeu.
“Providence!” voltou a chamar Tembe, “o percurso do Doutor Takayanagi é viável?”
O computador voltou a não responder.
A garganta de Takayanagi estava tão seca. Jane era a única que ainda olhava para ele.
(Não olhes para mim. Por favor.)
Ele não conseguia deixar de se lembrar da cara dela, coberta de lágrimas.
E então...
“O percurso do Doutor Takayanagi é viável. Pelo percurso sugerido, periélio seria atingido dentro de
aproximadamente 101 dias e entraríamos em órbita terrestre no espaço de 120 dias.”
“Seis dias antes do fim do oxigénio.”
“Seis dias para nos salvarmos.”
“Contudo...” continuou a Providence, “existe 13% de risco da nave sofer danos irreparáveis. 5% de risco
da nave ficar inabitável. 20% de possibilidade de casualidades a bordo. 7% de risco de morte de toda a
tripulação.”
Tembe pensava.
“É a melhor hipótese que nós temos.” disse Valenzuela, os seus olhos fixos nos olhos da Capitão
Tembe. “Se não virarmos já, 100% de certeza que iremos ter casualidades a bordo. 5 entre 22,
Cecília...”
“Gostaria de poder confirmar com Pequim.”
“Eles não nos vão deixar. É demasiado arriscado.”
“Nós não temos responsabilidade apenas pela tripulação, Trini. Nós temos responsabilidade
pela carga, pela nave e por aquilo que recolhemos. Por isso, nós devemos falar com alguém que
também consiga tomar esta decisão connosco. Providence, gostaria de mandar uma mensagem
para o Posto de Comando.”
Tembe dirigiu-se para a câmara de comunicação da ponte. A câmara ligou-se e a sua cara
apareceu no ecrã principal da nave. Ela parou por um segundo, a olhar para o seu próprio
reflexo, as caras de todos atrás de si a olharem para a capitão através do ecrã. Quando Tembe
finalmente falou, disse:
“Providence, tomei uma decisão. Iremos seguir a trajectória do Doutor Takayanagi. Que Deus
nos proteja.”
Subitamente, Takayanagi era de novo um miúdo assustado e a senhora Takayanagi, a maior cabra de toda
Kanto tinha um dos seus fequentes ataques de fúria. No chão, entre eles, estava o peixinho preferido da
senhora Takayanagi, que Hiro-bo — pobre, pobre Hiro-bo — tinha tirado do aquário para ver o que lhe
acontecia. Era um belo peixinho-mouro, preto e branco e amarelo e chamava-se Aiko. Agora ele estava
espalmado na carpete e Hiro-bo não sabia o que fazer. Ele nunca o deveria ter feito.
(Oh, Deus! Eu sou tão sujo! Deus! Eu sou tão sujo! Por favor...)
Takayanagi não se lembrava do que tinha acontecido a seguir, mas conseguia vividamente sentir o sabor de
Aiko na boca. A senhora Takayanagi era uma boa cozinheira, mas aquele era um peixe que ela nunca tinha
feito. Era borrachoso e amargo para além do que o molho de soja conseguia esconder e tinha espinhas
minúsculas por todo o lado. Hiro-bo ficara doente durante o resto do mês.
♦
Em direcção ao Sol eles foram.
VERGONHA!
Takayanagi por uma e outra vez refazia as contas da órbita da nave e por uma e outra vez
chegava à conclusão que o periélio da nave acontecia já numa zona em que a temperatura média
era 800 graus Celsius, 100 graus acima da capacidade de protecção das paredes da nave.
ESTÚPIDO! CABRÃO!!!
MATASTE-OS A TODOS!
Mas o computador tinha feito as contas e tinha aprovado a sua trajectória. Em quem é que
poderia confiar? Será que ele os tinha enganado?
O ambiente na Providence mudou consideravelmente.
Enquanto Valenzuela, Tampuran e a sua equipa de engenheiros passavam os dias na doca das
máquinas infrutiferamente a fazer testes para tentar compreender o que era o cilindro, Elsayed,
Nassiri e Ruhian foram assaltados por um súbito fervor religioso e começaram a rezar os três
no deck de observação, virados para o pequeno ponto azul que era a Terra. Tembe também
rezava, mas não dizia a ninguém.
A líbido de Takayanagi e Jane tinha disparado e os dois fodiam como coelhos no cio. Os seus
encontros eram muitos, rápidos e violentos. Sexo passara a ser bastante mais comum, e as
inibições dos tripulantes começaram a desaparecer. Os casais chegavam a encontrar-se seis
vezes ao dia e fodiam com urgência nos locais mais à mão, não uns pelos outros, mas mais por
causa da tremenda sensação de isolamento que lhes tinha crescido nos corações. Valenzuela,
Mathers, Ruhian e outros astronautas até então felizmente casados e com filhos, esqueceram-se
rapidamente das suas famílias na Terra. Quando não podiam foder, ou aqueles que tinham
ficado de fora no processo de criação de casais, masturbavam-se nas casas de banho, que
rapidamente se tornaram locais intransitáveis, o que ainda baixou mais a moral na Providence.
A tripulação passou a ter muito mais regularmente consultas psicológicas com Askaa que
passou liberalmente a receitar calmantes e sedativos a todos os que lhe pedissem. Um vento
invisível e desolado tinha-se levantado e fustigava-lhes as almas sem piedade.
Um dia, uma comoção gigantesca atraiu todos para o posto médico. Askaa tentava acalmar
Valenzuela, que começara a chorar e a fugir pelo consultório. Ela acreditava que o computador
central da Providence tinha começado a falar com ela, não como um computador, mas como
uma pessoa. Van Zandt furou a pequena multidão e deu uma bofetada com toda a força em
Valenzuela, que parou logo de chorar, antes de a beijar com profunda ternura. O resto das
pessoas dispersaram. Van Zandt e Valenzuela não voltaram a aparecer na ponte nesse dia.
Tembe não os censurou.
No posto de observação, o disco solar, todos os dias aumentava um pouco.
♦
Uma noite, Takayanagi estava de vigília na ponte com Hui e quando o chinês se ausentou por
uns momentos, Takayanagi perguntou à Providence quem é que ela teria escolhido para ser
morto caso tivessem continuado a rota original.
“Essa informação é confidencial e não a posso divulgar.”
“O meu código de oficial é o 11790974 e como chefe de navegação desta nave, eu exijo saber
quem é que terias recomendado para morrer caso tivessemos continuado na rota anterior.”
“Tem a certeza que quer saber os nomes?”
“Tenho.”
O computador demorou um minuto antes de responder. Takayanagi olhava por cima do ombro,
para a porta, não fosse Hui ter voltado do seu passeio nocturno.
“Os tripulantes que eu teria recomendado que morressem seriam aqueles que naturalmente consumissem mais
oxigénio, para optimizar os níveis de O2 para o resto do trajecto até à Terra. Como o Doutor Enkhtuya é o
único médico a bordo, teria de sobreviver a esta triagem, o que nos deixava com a seguinte lista, por ordem
de necessidade: Fyodor Ferapontov, Tór Ødegård, Isaac Van Zandt, Dmitri Polyakov e Anthony Jal. Com
estes tripulantes fora da equação, teríamos chegado à Terra com 3% de oxigénio.”
Takayanagi não estava na lista. Ele teria sobrevivido!
“Nessa lista, o meu nome estava colocado em que posição?”
“Oito.”
Ao contrário de se sentir aliviado com a sua colocação na lista, como julgava que ficaria,
Takayanagi apercebeu-se que se não tivesse sido por causa do seu medo irracional em ser
escolhido, ele teria chegado em segurança à Terra. A partir de agora, tudo o que ocorresse, seria
por sua causa.
♦
No dia seguinte, Jane e Takayanagi foram para a doca das máquinas. Naquela altura, ninguém
das equipas de engenharia e de informática estariam a trabalhar no cilindro, por isso tinham a
doca só para eles. O cilindro permanecia, a brilhar tenuemente na penumbra.
Enquanto se beijavam e se despiam, Takayanagi deu por si a pensar em como não conhecia
mesmo nada àcerca de Jane. O nome completo dela era Jane Jarratt e tinha nascido na
Austrália, a segunda de três irmãos. Engenheira de telecomunicações pela Universidade de
Singapura e fizera treino de astronauta na academia de Wenchang. Ela tinha 24 anos e já tinha
estado na Lua, mas nunca fizera uma missão até ao Sistema Solar exterior. Eles tinham-se
conhecido pouco antes de terem sido contratados para a Providence. Ela tinha acabado com o
seu antigo namorado quando aceitou o trabalho de um ano. Durante sete meses, eles pouco se
tinham falado. Ela parecia apreciar mais a companhia das duas informáticas. Tirando um par de
livros de que ambos tinham gostado, eles não tinham interesses em comum. Como é que
sequer eles se tinham juntado? Aquela noite parecia um borrão. Era deprimente o quão pouco
ele sabia sobre Jane.
“Isto é tudo culpa daquilo.” disse finalmente Jane enquanto Takayanagi se baixava para lhe
beijar as mamas.
“É.”
“Tens medo?”
“Sim. Imenso.”
“Estás arrependido?”
Subitamente, Takayanagi era de novo um miúdo assustado e a senhora Takayanagi, a maior cabra de toda
Kanto tinha um dos seus fequentes ataques de fúria.
E ela estava ali... Mesmo à sua frente. E Takayanagi estava a chupar um dos seus mamilos.
“Não. Nunca.”
Ao toque o cilindro era macio e morno, como outro ser humano mas gélido por dentro e se
uma pessoa deixasse lá a mão ao fim de algum tempo doce, espesso desespero começava a
entranhar-se no corpo. Ao fim de algum tempo o próprio mundo deixava de importar.
Sentindo-se de novo ausente, como naquele dia em que Takayanagi propôs mudar a rota da
Providence, ele forçou-a contra o cilindro e aí foderam de pé, de olhos fechados. Enquanto
fodiam, a fraca gravidade na sala começou a mudar de direcção. Subitamente o cilindro era o
centro de gravidade, e depois o tecto. Os dois começaram a cair, não sabia se para baixo ou para
cima, por entre nuvens, em direcção a um oceano negro e sem fundo.
E enquanto os dois se vinham, Takayanagi abriu os olhos e viu toda a tripulação reunida à volta
do cilindro, a foderem e a virem-se ao mesmo tempo em pares e em trios e sozinhos, todos
sozinhos — a Capitão Tembe e Mansell, Tampuran e Worra, Askaa, Bayard e Elsayed, Van
Zandt e Valenzuela, Pascutiu e os dois russos, Sidibé por si só lá ao fundo, Teaiwa contra o
cilindro, Ruhian por trás, Jal e Hui e o norueguês com Lazzaroni e Mathers e Nassiri sozinhos
— e por detrás das paredes de metal todas as estrelas e o interminável vazio uivante que de
alguma maneira tinha sido todo contido dentro daquele cilindro, e o horror que estava para
além dele. E de todas as bocas saiu um grito e todos os corpos se despejaram no escuro e o
cilindro permaneceu imóvel, negro e transparente, morno e gélido, testemunha única do último
orgasmo a bordo da Providence.
♦
Desde esse dia, nem Jane nem Takayanagi se conseguiram vir. Eles fodiam e fodiam e fodiam,
em todas as posições, em todas as situações, mas eles tinham deixado de sentir tudo da cintura
para baixo. As sessões deles acabavam com Takayanagi a gritar e a atirar com as suas coisas
dentro do quarto. Os seus livros, os seus computadores, um globo de neve do Jardim Zoológico
de Sapporo que a mãe lhe tinha comprado.
(Esse foi um bom dia? Não me lembro.)
CRASH!
A bola de neve partiu-se e o brinquedo ficou arruinado. Takayanagi nunca mais teria uma boa
recordação daquele dia.
ÉS UMA MERDA!
ARRUINAS TODA AQUILO EM QUE TOCAS!
“Hiro...” começou uma voz atrás dele.
Takayanagi virou-se e gritou, pronto para bater na pessoa que o tinha chamado. Jane recuou e
caiu de rabo na cama dele.
“Eu não queria fazer-te mal...”
Takayanagi pensou que naquele momento ela parecia uma criança. Foi a última vez que ele a
viu nua.
Sozinho, Takayanagi tentava-se masturbar, sem sucesso. Eventualmente acabou por desistir
quando começou a esfolar a glande.
“É a merda do cilindro.” avançou Van Zandt na ponte, quando todos estavam presentes, o que
fez com que todos os ânimos se exaltassem. Toda a gente estava presente na messe porque
Askaa tinha-os reunido a todos, quando se apercebeu que todas as pessoas na tripulação, sem
excepção, tinham sido afectados nas últimas três semanas por um ataque geralizado de
anorgasmia.
“Devíamos largar outra vez essa merda no espaço antes que ele nos dê cabo a todos.”
“Aquele cilindro é uma das descobertas mais importantes da história da humanidade, e
enquanto eu for capitão desta nave, ninguém irá atirar nada ao espaço!” urrou Tembe, no topo
da sua voz.
“AS MINHAS BOLAS ESTÃO A EXPLODIR!” gritou Van Zandt por cima de Tembe. “E não
são só as minhas! Contem-lhe. Contem-lhe... Chris, Raman, Hiro, Trini, Dmitri, Tór, Marta...”
ele virou-se para Mansell, que segurava em Tembe pelos ombros “George... Eu sinto-me em
fogo! Eu não sei porquê!!! Eu já não sou dono do meu corpo! Toda a minha pele é um
formigueiro! Não existe um momento do meu dia em que eu consiga deixar de pensar que
vamos todos morrer!”
“Nós não vamos morrer, Isaac.”
“VAMOS SIM! O computador está enganado. Eu sei... Eu já fiz as contas...”
Takayanagi sentiu uma enxaqueca a começar.
DEVIA TER PEGADO EM TI E DEVIA TER-TE ESMAGADO A CABEÇA CONTRA A
PAREDE, QUANDO ERAS BEBÉ.
“Karim...” disse Tembe para Elsayed. “A partir deste momento és o meu imediato.” e depois de
volta a Van Zandt: “Isaac, lamento imenso, mas enquanto estiveres assim, é melhor que
descanses. Temos estado todos sobre imensa pressão. O periélio é daqui a quatro dias, e eu não
posso dar-me ao luxo de permitir que isso afecte o funcionamento da minha nave.”
Van Zandt começou a chorar.
Se alguém naquele momento estivesse na doca das máquinas, teria visto o cilindro a escurecer e
a ficar negro sólido.
No dia seguinte a cisterna rebentou e Huy mais quatro dos cinco engenheiros a bordo da
Providence faleceram. Esses foram os que tiveram sorte.
♦
Primeiro, o isolamento começou a desfazer-se na zona dos camarotes. Quando a cobertura
cedeu, um mar de chamas engoliu o corredor residencial. Mais três pessoas morreram dessa
vez. Van Zandt foi uma delas. Num acesso de dor, Trinidad Valenzuela desceu até à doca das
máquinas e envenenou-se com óleo para as máquinas.
A nave tremia e agitava-se agora que havia uma brecha na cobertura. O final estava próximo.
Cecília Tembe organizou um jantar na messe, enquanto a nave chiava e tremia. O Posto de
Comando de Pequim sabia das razões pelas quais eles tinham tentado contornar o Sol e a
última coisa que eles fizeram antes da radiação ter tornado impossível a comunicação foi
demitir Tembe. Elsayed tecnicamente era o capitão agora, mas ninguém culpava Tembe.
Bayard voltara a colocar a música e os astronautas trocavam entre si a hipótese de poderem por
músicas que queriam ouvir. Ninguém dançava, mas todos cantavam.
Takanayagi não tinha vontade de se juntar-lhes e tinha-se encaminhado em direcção ao porão
das máquinas quando a sirene da nave começara a tocar.
E de novo ele era um rapaz pequenino.
E o sabor de Aiko veio-lhe à boca.
juntamente com o sabor de Jane — da Jane que ele nunca tinha conhecido.
E a dor penetrante das ervilhas nos joelhos.
E o sabor do esperma de Haru, quando ele o forçou a mamá-lo nos chuveiros da piscina, um dia que estavam
sozinhos.
E o sabor metálico do sangue com que tinha ficado, quando Haru lhe batera.
Takanayagi já não tinha a certeza quais das suas memórias eram verdadeiras ou eram falsas. A
verdade é que ele sentia-se fora de si desde que o cilindro tinha chegado. E de todas as suas
memórias traumáticas, e todas as vozes que tinha dentro da cabeça
CABRÃO! FILHO DA PUTA! NÃO ÉS NADA!
ele tinha a esperança que todas elas eram falsas. Raios, ele esperava que todas elas fossem
falsas.
Por isso, ele desceu em direcção ao cais para atirar o cilindro de uma vez por todas para fora da
Providence. Ele cortou os cabos de segurança e com algum esforço empurrou o cilindro para o
centro da doca, onde a gravidade era nula.
O cilindro gritava na sua cabeça. Ele também.
Mas quando Hirokazu Takayanagi carregou no botão para a despressurização da câmara
começar e as portas se abrirem, pela primeira vez desde que o cilindro chegou, ele sentiu-se
feliz.
O ecrã bloqueia. Roberto acabara de lançar uma nova versão do software em que está a trabalhar no servidor. Duas da manhã, só se ouve o som da ventoinha do portátil. O engenheiro mexe o rato e tenta várias combinações de teclas. Acaba por pressionar o botão de reset.
Enquanto aguarda que o computador reinicie, agarra no smartphone. Quer dar uma olhada na rede social. Aparece-lhe uma foto de Isabel, cabelos negros longos e encaracolados, olhos verdes e um sorriso felino. Sente os olhos húmidos. Há seis meses atrás, viviam juntos neste apartamento. Ela deixara-o umas semanas depois de ele arranjar este emprego. Roberto atira o telemóvel para cima da mesa, tentando ignorar o homem que estava agarrado a ela.
Não há ligação à Internet. Corre um diagnóstico e percebe que o router está mal configurado. Tenta aceder ao painel de administração pela wireless. Acesso negado. A palavra-passe fora mudada.
– Mas que raio! – Bate com o punho na mesa. – Onde é que terei metido o cabo de rede?
Abre a gaveta para procurar um no meio do emaranhado.
O smartphone vibra. Uma notificação. Uma memória de há cinco anos. Um rapaz de dezoito anos, magro e alto como um espeto. Tinha uma barba que ainda não se desenvolvera por completo. Era o seu irmão mais novo, Paulo, ao lado do seu primeiro carro. O único. O que conduzira naquela curva fatal. Removeu a notificação, arrastando-a para fora do ecrã, como gostaria de varrer da memória o facto de ter embebedado o irmão nessa noite.
Leva o portátil e o cabo até à entrada do apartamento. Liga-se ao router. Nada resulta. Vê-se obrigado a restaurar as definições de fábrica para restabelecer a ligação à Internet. Volta à secretária. O login ao servidor falha, apesar das credenciais estarem correctas.
O telemóvel inicia uma música irritante. Uma chamada.
– Quem é que liga a estas horas?
Desconhece o número. Rejeita a chamada. O toque volta de imediato. Outro número desconhecido. Rejeita. Mais uma chamada. Aceita.
– Estou?
Estática. Os segundos passam.
– Estou? Quem fala? Que raio de brincadeira é esta? São quase três da manhã!
Só a estática lhe responde. Rejeita.
Nova chamada. Desliga o aparelho e decide fazer uma pausa. Vai até à cozinha e abre o frigorífico. Não há nada, para além de uma catrefada de cervejas e dois restos de comida rápida chinesa. Agarra num copo usado e coloca-lhe uma quantidade generosa de whisky que estava em cima da bancada. Podia ter agarrado na de vodka ou na de rum. Não lhe fazia grande diferença. Bebe o conteúdo de uma vez e acaba por levar a garrafa para a mesa.
Algo o está a impedir de se ligar aos servidores. Tenta todas as alternativas. Nada resulta.
Um clique sobressalta-o. Um email do CTO da empresa. Algo incomum.
Por que é que tens o telefone desligado?
Roberto volta a ligar o aparelho, receoso que as chamadas anónimas continuem. Assim que o dispositivo inicia, faz uma chamada para o CTO.
– Estou, daqui fala Stephen Campbell, CTO da Social Network.
– Estou, daqui fala Roberto Dias, do departamento de Machine Learning…
– Que raio, por que é que tinhas o telemóvel desligado?
– É que…
– Lá estás tu com desculpas. Completaste o que te pedi?
– Sim. O gestor inteligente de conteúdos está pronto.
– Quando é que vai ser lançado?
– Meti-o no servidor há uma hora.
– Deste-lhe acesso total aos dados?
– Sim, tal como tínhamos combinado.
– Perfeito, depois falamos.
O CTO desliga. Roberto bebe um trago generoso. Abre uma aba para a rede social. Uma notícia sobre cancro da mama. Enterra a cabeça nas mãos. A mãe fora diagnosticada no ano passado. Os longos cabelos cor-de-avelã, com alguns cinzentos pelo meio, caíram durante a quimioterapia. Nem as sobrancelhas sobraram. Sentia um aperto no coração em cada visita e um maior ao lembrar-se que demorara quatro meses para lhe fazer a primeira visita.
Seca as lágrimas e endireita o cabelo. Envia um email para o gestor de sistema:
Não consigo entrar nos servidores. Parece que me mudaram a palavra passe ou que me revogaram as permissões.
Enquanto espera pela resposta, bebe outra golada e faz scroll. Engolir é mais fácil que saltar, diz outra notícia no seu mural. Reconhece o contexto na publicidade do metro de Londres. Termina a garrafa. Sente o álcool a subir-lhe ao cérebro.
O email recebe resposta:
A tua conta foi eliminada. Vou tratar de criar uma nova.
Volta à rede social. Um pouco mais abaixo, um anúncio de crédito ao consumo.
– Como se já não estivesse endividado o suficiente…
Uma grande bebedeira num casino tinha-lhe custado uma dívida que demoraria anos a pagar.
O smartphone toca de novo. Atende.
– Ouve lá, o que é que fizeste aos servidores?
Roberto estremece.
– Nada…
– Nada o tanas! A minha conta está bloqueada e o administrador de sistema disse-me que o teu update se está a espalhar por todos os servidores sem autorização. Já passou para os nossos outros data centers e anda a apagar contas, entre outras coisas. Ninguém sabe como parar aquilo!
– Então…
– Então, diz-me como parar isto!
– Não sei…
– Roberto, pensa, que é para isso que te pago! Aquilo está a causar disrupções de serviço…
– Juro que não sei o que fazer…
– Escolhes esse caminho?
– Não estou a perceber…
– Eu sempre soube que serias a ovelha negra. Tens noção que nos estás a fazer perder milhões? Alguma coisa em tua defesa?
– Estou farto de aturar a tua atitude! Pensas lá porque tens milhões, que podes fazer o que quiseres com os empregados...
– Isso arranja-se, estás despedido. E prepara-te para um processo por danos….
Ao invés de desligar a chamada, Roberto atira o telemóvel contra a parede, partindo-o em vários pedaços. Volta à bancada e serve-se com vodka. De súbito, sabe o que fazer. Dirige-se à casa de banho deixando o navegador aberto na rede social. No mural está um artigo sobre a interacção perigosa entre alguns medicamentos e álcool. Fora a sua melhor criação.